"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

domingo, 30 de novembro de 2008

LUSCO-FUSCO

Recentemente, me peguei escrevendo isso a um amigo: “Sigo vivendo, lendo e sonhando, que é o que nos resta”. Devo estar no princípio do fim. Naquele momento do entardecer em que a luz começa a se deixar envolver pelas sombras, depois de um dia inteiro de flerte.

Ilustração: detalhe da capa do romance Le suspect (1938), de Georges Simenon, em edição de bolso da Folio (2002).

sábado, 29 de novembro de 2008

A QUEDA

Uma das histórias mais deliciosamente engraçadas que meus pais contavam quando, na ilha (morei numa ilha), a família se reunia em volta do grande lampião de mesa – não havia energia elétrica, conseqüentemente não havia tevê – era a da queda que os dois levaram de lambreta, em 1955 ou 1956, talvez antes.
Não foi propriamente uma queda – e nesse ponto da história os dois riam muito. Um veículo mais afoito os sapecou da estrada, e eles – pai, mãe e lambreta – foram deslizando por uma ribanceira de capim, como duas crianças felizes, até que pararam lá embaixo, numa espécie de charco meio seco. Resultado: nem um arranhão sequer, só o susto e o brinquedo, a sensação de volta à infância num parque, menino e menina nos primeiros contatos para um contato maior, depois, na cama e na vida.
Tais instantes preliminares são urgentes e fundamentais, como os preparativos duma primeira viagem ou da última... Sem eles, a vida se resume a um acúmulo de experiências destituídas de peso, como barriguda ao vento.
Felizes aqueles que deslizam pela primeira ribanceira da vida e seguem ilesos, formados, famintos de desejo.
Ilustração: detalhe do cartaz do filme A princesa e o plebeu, de William Wyler.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

JOGO DA VERDADE

Todas as fotografias familiares são falsas. Jamais dizem a verdade. Passamos a vida nos esforçando em parecer verdadeiros e, no entanto, só o conseguimos quando, durante as fotografias em família, nos resignamos em ser falsos...


Pintura: Quarto em Nova Iorque (1932), de Edward Hopper (1882-1967).

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

OUTRA PESSOA POR UNS DIAS

Uma de minhas leitoras me escreveu expressando seu desejo, bem humano, de “experimentar a vida de outras pessoas por uns dias”. O desejo de ser outro é antigo e recorrente e inspirou muitos romances, contos e filmes. Um dos melhores é Se eu fosse você, do francês Julian Green. Neste romance, o protagonista, por interferência de um criado do demônio, recebe o poder de, mediante uma frase mágica, se transformar em qualquer pessoa que esteja à sua volta. Pouco a pouco ele vai operando as transformações ou transmutações, que, no entanto, não conseguem satisfazê-lo, nunca. Torna-se um homem rico, depois um homem muito forte, outro muito bonito e sedutor, até que enfim... Bem, leiam o livro, conscientes de que tal desejo não é nada de mais e que não devemos nos envergonhar de senti-lo, esporadicamente. Não há vida que nos contente, nem acalme a ânsia de experiência humana. Pensemos como Amélie Nothomb: “Qual é o inconveniente de se viver a vida de um desconhecido?” Nenhum. Tom Ripley o provou.
DVD: Plein soleil, filme de René Clément, baseado em O telentoso Ripley, de Patricia Highsmith.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

DILEMA

Não sei o que é pior para uma jovem escritora brasileira: se ler Clarice Lispector ou não ler Clarice Lispector...

Ilustração: detalhe da capa da décima edição de A hora da estrela (Nova Fronteira, 1984), por Victor Burton.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

CONTRASTE

Nenhuma frase interessante para transcrever aqui, nem minha nem de ninguém... E nem foi um dia ruim, hoje. Talvez por isso. Uma sucessão de dias bons implica forçosamente uma vida sem palavras, sem idéias, sem sonhos. Uma vida com hora marcada, maleta e sofreguidão, cujo ápice fosse lavrar o próprio testamento.
Pintura: Paraíso da Ararinha Azul (1997), de Aldemir Martins.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

O ROMANCE

A originalidade de um romance está em sua forma, entendida esta como a soma de partes bem definidas e ajustadas, e que não se separam senão para análise: as poéticas descrições de ambientes em Camus; a simulação dialética do estilo machadiano; a vida como ultraje em Faulkner; a estrutura em cadeia do João Miramar etc. Quanto ao assunto, depois da Bíblia, dos gregos, dos russos, do cinema e dos Modernos, tudo é reprise, déjà vu.

domingo, 23 de novembro de 2008

A MULHER QUE PASSA

Um dos mais recorrentes motivos da literatura ocidental é o da mulher que passa (não importa se no espaço ou no tempo). A mulher apenas entrevista, por uma fresta, um instante, uma quase-miragem e, no entanto, jamais esquecida. Foi um tema por demais caro ao Romantismo, que o exauriu e popularizou, e igualmente à Modernidade, que o transformou num símbolo de nossa incapacidade de dominar a realidade, sempre intangível, imponderável, volátil – densa ao nível do impreciso.
Muitos foram os poetas que cantaram a sua mulher desconhecida, passageira do instante e do acaso: Murilo Mendes, Bandeira, Vinícius e, se não me engano, Drummond. No âmbito do idioma castelhano, um de seus maiores cantores foi o espanhol J. M. Fonollosa, com pelo menos uma dúzia de poemas dedicados às belas viandantes nova-iorquinas, arrolados no volume Ciudad del hombre: New York. Até Orson Welles, no cinema, se rendeu ao mistério da femme inconnue: em Cidadão Kane, há uma seqüência em que um dos personagens segreda ao jornalista a história da mulher entrevista por ele no cruzamento de duas barcas à saída do porto, mulher pela qual se apaixonou e, mesmo passados tantos anos, jamais esqueceu...
Também a mim aconteceu de perpetrar um poema à mulher furtiva e alheia – não sem o temor de parecer repetitivo e, assim, fracassar duplamente:

A MOÇA DE PRETO

A moça de preto que lancha na lanchonete
É magra e tem pernas de graveto.
O salto muito alto e as roupas justas deixam-na
ainda mais magra.
Claro que as gordas não a suportam.
Claro que os homens a desejam.
É o que ela nos diz quando morde seu lanche
E não menos quando bebe sua Coca.
De sua enorme bolsa – também preta –
O que ela tira quando se apaixona?
Qual o seu segredo quando solta aqueles cabelos?
São mais – ou menos – felizes os que a viram por inteiro?
É com este mistério que a deixo...

sábado, 22 de novembro de 2008

SEM NOVIDADES NO FRONT

Sábado... E, à parte a certeza de que amanhã é domingo e que até o meio-dia seremos felizes, um dia como qualquer outro, cravado em nossos olhos como pregos numa parede...

Pintura: Marinha (1984), de Aldemir Martins.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

JEKYLL & HYDE

Uma noite dessas, sonhei que matava Graham Greene. E que minha esposa, cúmplice, me ajudava. Primeiro, mandei um violento golpe no sujeito, com um cano – de ferro provavelmente –, e por fim ela esgotou-lhe o resto de vida, sufocando-o no chão, com as mãos, sem piedade. E fizemos tudo tranqüilamente, desprovidos de qualquer hesitação ou questionamento, como acontece aos personagens dos filmes de ação americanos, que nunca pegaram uma arma e atiram com precisão, que nunca mataram – nem mesmo um rato – e o fazem sem hesitar, sem remorso. Acordei me perguntando por que exatamente Graham Greene, um autor que tanto admiro – e foi tudo, pois reconheço que a experiência, ainda que em sonho, foi maravilhosa. Um desabafo, uma resposta, ar puro depois de uma compressão insuportável. Fui assassino num sonho e gostei. Mas não me levem a mal – e fiquem tranqüilos: sou consciente o bastante para saber que, ao menos neste caso, a fronteira não é nada imprecisa. Realidade é realidade, sonho é sonho. Ainda prefiro ser Dr. Jekyll e sonhar que sou Mr. Hyde... Ou será o inverso?

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

PENSAR É TUDO

Não devemos nos deixar cooptar, pender para um dos lados. A verdade, se existe, não está nas margens, mas de entremeio, na fronteira difusa entre realidade e delírio. Einstein dizia que era preciso não concordar: ao concordar, deixa-se de pensar, e pensar é tudo, o único propósito, a propulsão que nos mantém vivos e atentos para as sutilezas e os mistérios do universo. Concordar, portanto, não é diferente de morrer ou de não existir. Não é outra a conclusão a que chegou, esteticamente, o escritor e crítico norte-americano William H. Gass: “O que aprendi de Pierre Louys? Balzac? Jules Romain?... seus quebra-cabeças e seus mistérios, suas confusões e suas mentiras. Eu não entendia. Eu não me dava conta. Eu queria sujeira ou pureza, inocência ou cinismo, jamais mistura enlameada, o equilíbrio monótono, os tons regulares da verdade”. Da verdade, que é inexatidão, incerteza, dúvida. Efervescência de opostos no caos do estranho.

Ilustração: Prentententoonstelling, de M. C. Escher.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

AQUI E ALÉM

A idéia de um mundo na vida e outro na morte é tão antiga quanto o homem. Viver ou padecer aqui, e desfrutar ou penar além. O mundo dos mortos ou é o paraíso ou o inferno, talvez o desconhecido... O mundo dos vivos, este, de dias e noites, de chuva e sol, de um rosto que nos chama e outro que nos despreza... Mas, para os escritores modernos, uma vez que vamos morrer, já estamos mortos. Não há mais separação, nenhuma linha divisória, os sonhos se fundem. Jorge Luis Borges: “O homem esquece que é um morto que conversa com mortos”. Camus: “só existe um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis”. E o zombeteiro Stanley Elkin, que pergunta: “Quem é que não está morto?”

terça-feira, 18 de novembro de 2008

PERDIDOS NO ESPAÇO

Quanta pose no mundo! Quanto teatro! E por nada. Ou por uma ninharia: fama aqui, um cadinho de poder ali, mais ou menos influência (a depender de quem e do momento), dinheiro ou bens materiais, que lambuzam o sujeito de um verniz falso... Impossível, num meio de pessoas assim, não recordar as palavras de Máximo Gorki: “Na Terra todos são vagabundos. Ouvi mesmo dizer que a própria Terra vagueia no espaço...” Pois é.

Foto: A embriaguez do sucesso (1957), de Alexander Mackendrick.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

TRADIÇÃO E MUDANÇA

O que a polícia não faz o cidadão providencia. Não há mais Guarda Belo, como em nossa infância, a guardar a rua de esquina a esquina, dia e noite. Então a minha rua contratou um vigilante, que a percorre noite e dia, sob o olhar impassível das janelas. E quando saio, às cinco da manhã, lá está ele, acompanhado de mais dois, que vigiam outras ruas, próximas. Conversam, riem, tramam amores para alguma noite incerta e que talvez jamais aconteça, discutem o desempenho deste ou daquele modelo de carro, o talento ou valor deste ou daquele jogador de futebol. Dão sorte que não há mais Manda-Chuvas em latas de lixo! Estão todos agora encerrados em vultosas coberturas, onde recebem lindas mulheres, pacotes de leite em pó e dirigentes do nosso e de outros países – e o mesmo Guarda Belo de antes faz vista grossa...
Ilustração: Top Cat (1961), de Hanna-Barbera.

domingo, 16 de novembro de 2008

LITERATURA E JORNALISMO

Certa vez, durante uma entrevista, o jornalista me fez duas perguntas em uma, talvez para economizar tempo ou porque já estivesse de saco cheio de minhas respostas – um tanto quanto evasivas – ou porque, afinal, as fazia a um autor sem muita relevância ou de relevância meramente local, no bairro, na Província: 1) o que é literatura e 2) que texto eu gostaria de ter escrito. Respondi assim:
“No belo conto de espionagem A dupla armadilha mortal, de Roberto Arlt, há um trecho memorável, que é ao mesmo tempo cinema (ação), metáfora (sentido) e filosofia (especulação). Uma espiã salta do avião, mas o pára-quedas não funciona, pois alguém sabotou-lhe as cordas. Arlt conclui o episódio de maneira sintética e terrível: ‘Estela era agora um ponto negro no vale profundo, e já não caía mais’.
“A um leitor atento tal fragmento faz recordar este verso de Rilke: ‘Olha em redor: cair é a lei geral’. Em ambas as situações ‘cair’ é ‘cair’ mesmo – deslocar-se sem força própria, por apelo da gravidade, de um ponto mais alto para outro mais baixo –, mas é igualmente ‘viver’ e ‘morrer’. Os três verbos estão lá, num único apenas, que remonta à idéia de outono, de vida que se desprende das folhas que caem em direção à morte iminente, com o inverno que chega...”
Não sei se o jornalista compreendeu, nem como o compreendeu. A verdade, porém, é que na edição final da entrevista sua pergunta não estava lá, nem obviamente minha resposta.

sábado, 15 de novembro de 2008

SÁBADO

Nada a dizer hoje. E ainda bem, pois: “É preciso perder o hábito das frases inúteis”. O conselho é de Simenon.

Foto: cena de Sábado (1995), de Ugo Giorgetti.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

O SEMPRE

Segundo algumas teorias modernas, e outras tão antigas quanto o mundo, a existência é uma repetição enfadonha. E assim será, mesmo que haja outra vida, pois tudo já aconteceu, está acontecendo e ainda acontecerá, infinitamente. E nós, igualmente, seremos sempre os mesmos, pois o futuro já foi, o presente ainda será e o passado está sendo. Eu próprio, em algum momento pretérito, já escrevi este texto e ainda o escreverei, quem sabe quando... Ou seja, continuaremos a ser quem somos, sem déficit nem acréscimo, por toda a eternidade. Consolador, não?

Foto: Laranja mecânica (1971), de Stanley Kubrick, baseado no romance homônimo de Anthony Burgess.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

CERTEZA TARDIA

Foi num sábado adolescente, das 13 às 17 horas, que li O estrangeiro, de Camus. Li e descobri que não estava sozinho.
Desde então indico este livro a muita gente.
Mas o que senti naquela tarde não só é irrepetível como não pode ser posto em palavras.
Eu correria o risco de ser infiel. Ou fútil, insincero. Ou de incorrer em adjetivos maçantes e gastos – como estes. Ou de simplesmente fazer poesia ruim. Portanto, direi apenas do que me aconteceu naquele sábado, meu dia propriamente dito...
Melhor: nem mesmo isso farei, afinal de contas o que de mais importante me aconteceu já está aí em cima: li Camus e descobri que não estava sozinho... E que, apesar de minha pouca idade na época, era tarde demais para esta certeza.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O INVENTOR

A rigor, fui eu (e muitas outras pessoas mais) que idealizei o DVD ou a fita de vídeo. Foi em 1979, quando, desejoso de rever filmes de minha predileção (Bonequinha de luxo, Rastros de ódio, Os pássaros, Psicose), tive a idéia de que no futuro os filmes seriam comercializados como as fitas cassetes, e os introduziríamos na tevê para assistir...

terça-feira, 11 de novembro de 2008

O PRÓXIMO QUER NOSSO OSSO

Não há graça na alegria, se não podemos compartilhá-la com o mundo. O problema é que, em geral, o mundo não a suporta. Mesmo os amigos, e não menos os parentes, são capazes de cobiçá-la por fraqueza ou então desdenhá-la, por inveja. Portanto, alegre-se em silêncio, entristeça-se sem público. Você certamente não será mais feliz, mas se aborrecerá menos.
Ilustração: Luiz Roberto Benatti, para a capa do livro Um por todos: poesia reunida, de José Paulo Paes (São Paulo: Brasiliense, 1986).

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

FILMES E LIVROS

Um livro não pode ir na íntegra para a tela. Fazer um filme de um romance ou de um conto é preencher vazios deixados por estes e promover outros que eles haviam preenchido. Parece paradoxal, mas não é. O cinema é imagem com imagens, fotografia em movimento; e a literatura, imagem com palavras, com sentidos. O cinema mostra, nos faz ver; a literatura sugere, nos faz imaginar. No cinema há a apresentação de uma realidade; na literatura, a representação, pois as palavras encenam em nossa cabeça o que dizem em seu entrechoque semântico. E essa diferença entre cinema e ficção promove efeitos bem diversos e curiosos. Em São Bernardo, para dar conta da introspecção de Paulo Honório e seu desejo de análise e organização do mundo à sua volta, León Hirsman adensa o aspecto psicológico do romance de Graciliano Ramos. Isso obrigou que um dos romances mais velozes da literatura brasileira se convertesse num dos filmes mais lentos do nosso cinema. Aí está a medida do que o cinema exige e obtém, mostrando; e a literatura proporciona e sugere, dizendo.

domingo, 9 de novembro de 2008

O ACIDENTE

Minha primeira manifestação artística foi o desenho. Talvez por isso meu olhar, como diria Marques Rebelo, seja mais cinemático, e eu goste tanto de cinema, a ponto de fechar um livro, por mais que o esteja apreciando, para assistir a um bom filme. Não sei, porém, o que isso implica, nem me importo de saber. Esta existência não valeria a pena se não houvesse liberdade, mesmo a mais simples, quase instintiva, de satisfazer a um ou outro desejo. Mas a verdade mesmo é que me tornei escritor por acidente... Talvez o fato de sempre existir muitos livros em minha casa tenha sido decisivo. E meu pai estava todo o tempo lendo, inconscientemente me instigando. Pulei então dos quadrinhos e caí em Lolita.

Ilustração: mais uma provocativa capa de Lolita, Companhia das Letras, 1994.

sábado, 8 de novembro de 2008

INVASÃO OU DAS UNANIMIDADES

Nada amedronta mais o ser humano do que algo ou alguém tornando-se tudo, todos. Este é, aliás, o argumento de O rinoceronte, de Ionesco – “Infeliz daquele que quer conservar a sua originalidade!” – e não por acaso a base do medo norte-americano do outro, quer sejam comunistas, muçulmanos ou homens do espaço.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

UMA VERDADE

Esta afirmação de Antoine de Saint-Exupéry: “O que buscamos vai morrendo conosco”. Diz tudo dos nossos sonhos irrealizados, que são a um só tempo o peso que nos sustenta no mundo e a leveza que nos ergue do chão...

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

HERANÇA

Minha mãe sempre dizia que era para eu ter nascido catorze anos antes. Em 1948, portanto. Bem no pós-Guerra. Mas qual seria a diferença, se assim fosse? Acho que nenhuma. Eu seria hoje mais velho, mais experiente e, sem dúvida, mais amargo. Mas talvez nem tivesse me tornado escritor, talvez nem gostasse das palavras, dos livros. Preferisse carros, pôquer, corridas de cavalo, jardinagem. Sou filho de um contexto, dono de uma herança: gasto o que me formou, o que os dias me deram. Esses dias, iniciados em 1962 e que alguma coisa, num momento qualquer deste ou dos próximos anos, haverá de interromper.

Foto: minha mãe, em 1961 ou depois (a data está na placa da lambreta).

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O TEMPO

Quantos tratados, compêndios, teses, ensaios, dissertações, poemas e romances – os sete volumes de À la recherche du temps perdu – com o propósito de se definir e precisar o tempo. E vem Anton Tchekov, com sua simplicidade e uma só frase, dizer-nos tudo o que basta e nos interessa: “O tempo vai passando sobre nós!”

terça-feira, 4 de novembro de 2008

OS DIAS CLAROS

Freud afirma que as crianças criam mundos quando brincam. Fiz muito disso quando menino: fui soldado, motorista de ônibus, marinheiro, playboy no meu Puma de brinquedo, vaqueiro, índio e até bandido. Aquilo sim era felicidade, e sem danos. Ter crescido me fez descobrir que a idade adulta nem mesmo é exílio, como afirmam os poetas. É pior. É prisão. É inferno. Um quarto escuro onde todos cambaleiam, drogados, se abalroando. Um lugar onde ninguém se respeita e todos se ignoram em favor de seus traumas, seus complexos, suas vaidades, suas neuroses. Um lugar onde impera uma espécie de jogo cujo término é a infelicidade do outro.

Cartaz: O gigante de ferro, desenho animado de Brad Bird.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

A FELICIDADE

Um dia chuvoso e livre, sem trabalho nem contas a pagar, passado numa cama larga e quente, o telefone desligado ou entregue à secretária eletrônica, e um título qualquer de Simenon, no qual, de quando em quando, virando distraidamente as páginas, nos deparamos com trechos assim: “Tinha a impressão de assistir a uma floração de blusas claras”.

domingo, 2 de novembro de 2008

MEUS MEIOS-DOMINGOS

Fui filho de um pai com duas famílias.
Raros eram os domingos em que meu pai não viajava, no começo da tarde, para ver sua outra mulher e sua filha, minha meia-irmã Indaiá que só vim a conhecer já adulto.
Por isso as partidas me fazem mal. Um trem se afastando na tarde ou um ônibus sumindo na curva, um navio ao longe ou um avião alçando vôo me trazem água aos olhos...
Por isso também os domingos me são tristes depois do meio-dia. Ainda que seja o meu dia preferido. Ou mesmo por isso: a emoção que senti insiste em ser repetida ou tão-somente relembrada − e isso dói.
É quase certo que ninguém jamais escapa do que foi. E eu fui um menino sem pai por muitos meios-domingos...
Foto: Kolya, filme de Jan Sverák.

sábado, 1 de novembro de 2008

SENTIMENTOS HUMANOS

Quando eu era criança e ficava doente, passava por um martírio. Não podia brincar, nem ir à escola, muito menos correr com o Pancho na praia, um legato que foi talvez o mais amistoso dos cães que tive a honra de conhecer.
Depois, passada a doença – e a convalescença –, eu me lamentava por perder tudo aquilo: os cuidados, as atenções, os presentes. Inclusive, o primeiro livro que li inteiro foi fruto de um sarampo.
Muito mais tarde, já adulto, compreendi que meus sentimentos não só eram normais como um composto humano, comum a quase todas as pessoas. Não são poucos, em todas as classes e nos mais variados lugares, os indivíduos que lamentam a doença quando doentes e dela sentem saudades quando curados. Esta confissão de George Bernard Shaw não deixa dúvidas: “Gosto da convalescença. É a parte que faz a doença valer a pena“. Ou este poema, do nosso Mauro Mota:

MENINO DOENTE

Eram o pião, a bola, o realejo,
o trem de corda, a caixa do brinquedo
de armar. Longe da escola, eram os
dedos da mãe, penteando-lhe os cabelos,
a fruteira no quarto, o açúcar-cande,
o resedá por cima da atadura.

Entre a cama e a janela, era o menino
com medo, não da doença, mas da cura.