"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

BISCOITOS DA SORTE

Passei boa parte do ano de 2008 fazendo refeições chinesas e, por conseguinte, arriscando nos biscoitos da sorte... Os papelotes estão aqui, na escrivaninha, um monte deles, como um desafio ao meu ceticismo. Em retrospectiva, percebo com certo assombro que alguns foram realmente proféticos: “Você será em breve honrado por alguém que você respeita”. Outros, porém, nem com o filtro do humor e da ironia poderiam ser levados a sério: “O seu negócio assumirá amplas proporções”. Esqueçamos o duplo sentido de “negócio”...
Selecionei dez “sortes” que, a meu ver, antes de nos revelar uma ventura qualquer, segredam-nos os passos, espirituais, para um auto-aprendizado e um autocontrole. O último, eu o tirei hoje, e foi o que me motivou a montar o decálogo abaixo, pois me pareceu mais do que apropriado para fechar o ano, neste 31 de dezembro. Coincidência? Talvez. Mas há quem assevere que não há acaso nem coincidência: que tudo já está previamente arranjado, e que o que não se fez é porque não se faria, e o que foi feito era porque já estava feito...

1) Não basta querer, é preciso também saber como fazer.
2) Alimentos e forragem devem preceder tropas e cavalos.
3) O progresso calmo e constante, livre de precipitação, conduz ao objetivo.
4) Nenhum tecido é feito de um único fio.
5) Até as torres mais altas começaram do chão.
6) Não levante uma rocha para depois derrubá-la em seu próprio pé.
7) A persistência realiza o impossível.
8) Não propague aos quatro ventos suas habilidades individuais, mantenha-se discreto em seu progresso.
9) A beleza das coisas existe na mente de quem as contempla.
10) A alegria está na luta e no esforço e sofrimento decorrentes; não na vitória em si.

Se é certo que saciei o estômago – e o saciei –, não é menos certo que alguma coisa extraí desta pedagogia da sorte. Pelo menos que não devemos dar crédito a qualquer meia-dúzia de palavras convenientemente combinadas...


Imagem: gravura do pintor japonês Hiroshige.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

DE LIVROS E LIXO

Mimi Asno ofereceu a Victor Vhil um exemplar de seu novo livro de contos. Mal ele deixou o café, onde os dois saborearam em silêncio uma fumegante xícara de cappuccino, Victor Vhil foi até a rua e atirou o livro na lata de lixo. Mais tarde, e sob uma fria chuva de outono, voltou para apanhá-lo. Não queria ser responsável por sujar o lixo.
Miniconto do livro Nem mesmo os passarinhos tristes. Foto: Chat des rues, de Sabine Weiss, para a Agence Top.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

MIMI ASNO

Duas asneiras ditas por M. A., contista: 1) sou um profissional da diversão; 2) não, a literatura não transforma ninguém, isso é mito. Pois bem, pondo os pingos nos is, diríamos que a verdadeira literatura não é diversão, porque não distrai: concentra; e, se não transformasse ninguém, ele próprio, M. A., não seria escritor. Nosso autor se esquece – se é que soube disso algum dia – de que a literatura, como toda e qualquer arte, reúne prazer e conhecimento, forças transformadoras por excelência. Nesse sentido, é como sexo. A primeira leitura de José, de Drummond, é como o dia seguinte a uma fervorosa noite de amor. A de São Bernardo, de Graciliano, ou de Dom Casmurro, de Machado de Assis, representa uma lua-de-mel inteira – ao lado de alguém que compense, é claro. Já a leitura de Guerra e paz, de Tolstói, bem, esta engloba muitas noites, muitas luas, ano após ano, até a impotência. Ou o fim.

domingo, 28 de dezembro de 2008

MALOGRO E MÉTODO

Muitos dos meus contos são romances malogrados – relatos que evoluíram até um certo ponto e pararam. É o meu método. Um dos meus métodos. Embora tivesse planejado uma narrativa maior, ela mesma se deu um fim, se escreveu. Obviamente que, consciente de que não posso ir além, volto e ajusto fatos e personagens, arredondo o texto, acrescento, corto, altero, adapto ao novo gênero o que antes inscrevia-se noutro. Assim nasce a história – uma história –, de um horizonte que não se alcança. De certa forma, uma alegoria da vida e dos limites da arte, do artista.

Imagem: ilustração de Andrés Sandoval não-aproveitada em O inédito de Kafka (CosacNaify, 2003).

sábado, 27 de dezembro de 2008

ESCRITORES

Há dois tipos de escritores: os que escrevem literatura e os que animam os circos literários. Os últimos costumam odiar os primeiros, inconformados com o fato de que os circos não perduram, estão só de passagem, como as modas literárias, os temas de demanda, as atrizes em voga.

Foto: cena do filme Garotos incríveis (2000), de Curtis Hanson: uma história de escritores.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

O SEGREDO

Num de seus contos mais festejados – e é provável que muitos de seus relatos tenham influenciado alguns dos melhores escritores europeus do século XX, entre os quais Thomas Mann, cuja célebre novela Morte em Veneza tem ecos de O cavalheiro de San Francisco –, o russo Ivan Bunin, que se refugiou na França, escorraçado pelos vermelhos (e é preciso que se diga e se reitere sempre: os vermelhos não gostam de arte), Ivan Bunin escreveu: “Sim, dia a dia, ano a ano, espera-se em segredo só uma coisa: aquele momento em que se vai topar com o amor feliz. Em última análise, é só essa esperança que nos permite viver, e é sempre vã”. Será ainda assim para os jovens que aí estão batendo cabeça? Será ainda assim para todos nós? E quando o encontramos, este momento, este amor feliz, o que fazemos depois? Quantos de nós o acharam? Quantos não o acharão jamais? Sim, é a essência da vida, da arte, a substância necessária que nos impulsiona, muito embora não o admitamos nunca... ou a disfarcemos de indiferença, estoicismo, fleuma.

Foto: cena do filme Um homem, uma mulher (1966), de Claude Lelouch.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

NATAL EM BRANCO

E o menino, ingênuo, pôs sua meia na janela, esquecido de que meses antes, quando se mudaram para aquele apartamento – no décimo-segundo andar –, o pai instalara telas em todas as janelas...

Miniconto do livro (inédito) Nem mesmo os passarinhos tristes.
Foto: cena de Parente é serpente (1992), de Mario Monicelli, ironia com o Natal.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

O NATAL DE NICK E NORA

Todo ano, perto do Natal ou mesmo na noite ou no dia de Natal – e isso desde criança, embora na época lesse mais gibis –, costumo ler uma série de obras literárias sobre o assunto. No último, li ou reli somente três, e com inúmeras interrupções, um mundo de incidentes: a delicada novelinha O pastor, de Frederick Forsyth, o surpreendente relato de Simenon, Un Noël de Maigret – mal-traduzido em português para Maigret e a menina – e o belo e ambíguo auto de Natal Morte e vida Severina, do nosso João Cabral de Melo Neto, mistura de poesia, teatro e romance; uma obra que só um gênio (de verdade, sem o sentido de clichê que arrebatou esta palavra) pode conceber. Este ano foi pior: por causa da escassez de tempo e dos afazeres em casa e na rua, tive que me contentar apenas em reler um conto de Ivan Bunin – Ida –, que não é, absolutamente, um conto de Natal; este é só um pretexto: é, na verdade, uma terrível história de amor. E, no próximo ano, quantas histórias de Natal lerei? Ou apenas lerei um ou dois minicontos, ou tão-somente um dos lindos poemas com os quais Manuel Bandeira marcou para sempre o nosso Natal? Possivelmente. Mas que assim seja, que a vida seja o que é. Sem chorumelas. E é por isso que amanhã lerei de novo A ceia dos acusados (The thin man), de Dashiell Hammett, que começa assim: “Estava eu encostado ao balcão de um speakeasy da Rua 52, em Nova Iorque, à espera de que Nora terminasse suas compras de véspera de Natal, quando uma jovem se ergueu da mesa onde se achava em companhia de outros e encaminhou-se para o meu lado. Miúda de corpo, loura, vestida esportivamente, uma figura agradável aos olhos”. Natal com humor, ironia, zombaria e crime. Natal sem linguagem nem sentimentos, sem idealizações nem sonhos. O Natal do mundo, como é o mundo, afeito a preços e trivialidades.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

TODOS OS SÉCULOS SÃO ÚMIDOS

Às vezes penso que Camus morreu providencialmente, quando colidiu seu carro com aquela árvore... Não que ele quisesse se matar, não é isso, embora apregoasse que o suicídio é o único “problema filosófico realmente sério”. Ele apenas se poupou de ver o que o mundo lhe reservava, e de constatar que Hiroxima e Nagasaki eram apenas uma prévia.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

A PASSAGEM

Infinito, infinito, infinito! Os epígonos de Borges fazem desta palavra, inadvertidamente, uma sentença mágica. Pretendem, como o mestre, encurtar a escada, subverter os degraus e, no topo, sem fadiga, voltar-se, à espera das palmas. Ora, se uma porta se abre para o infinito, não há mais volta para quem a atravessa. E, cuidado, muito cuidado! Borges lá te espera. Late e espera...

Capa: uma reunião improvável de Borges e Will Eisner, em edição da Globo, 2006.

domingo, 21 de dezembro de 2008

O ILUMINISTA

Os amigos costumavam tratá-lo pelo epíteto Filósofo, por inserir ele, em suas falas mais banais, citações atribuídas a Voltaire, Kant e outros proeminentes pensadores. Numa noite de bebedeira, com medo de ser assaltado, o Filósofo voltou para casa de táxi... Pois foi assaltado exatamente pelo motorista do táxi, que, apesar de tudo, o deixou perto de casa, sob um irreal poste de luz...
Miniconto também incluso no livro Nem mesmo os passarinhos tristes.
Foto: cena de Uma noite sobre a terra, de Jim Jarmusch, que se passa todo dentro de táxis.

sábado, 20 de dezembro de 2008

O IMPEDIMENTO

Era uma vez um garoto que desejava muito ter uma bola de futebol, mas seu pai, embora não passasse por dificuldades financeiras, jamais lhe deu uma de presente, nem no aniversário, nem no Natal – e foram muitos os Natais... Isso porque jamais encontrou um modo de disfarçar a redondez do embrulho, de maneira que o filho, muito antes de abrir o pacote, não soubesse do seu conteúdo, estragando assim a beleza do milagre...
Miniconto incluso no livro Nem mesmo os passarinhos tristes.
Foto: cena do filme O milagre de Berna (2005), de Sönke Wortmann.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

O HOMEM É O CÂNCER

O escritor russo Ievgueni Ievtuschenko, em Ardabiola, vê o câncer como um símbolo do mal no homem. Um limite inatingível também, pois é o fundo do próprio homem: alcançá-lo corresponde a uma espécie de anulação do ser que o alimenta e sem o qual a vida não existiria. A essência do homem é o mal, e o mal é o câncer; logo, o homem é o câncer, uma energia que disseca o organismo de dentro para fora: curá-lo faria do ser humano uma nulidade, uma carcaça. E assim, quando um cientista descobre essa notável cura, é o próprio homem, com sua inclinação para a destruição, ainda que inconscientemente, quem vai fazer com que tal conhecimento desapareça, escamoteado no véu da ignorância, do embotamento. E o faz com brutalidade, bem ao gosto do gênero humano. O sujeito que doravante poderia evitar que muitas pessoas morressem perdeu a consciência, mal se lembra quem é, e menos ainda que perpetrou uma das maiores descobertas de todos os tempos. Surrado quase até a morte por um grupo de rapazes, está confinado à cama e ao silêncio. Mas, bem no fundo de sua mente, lá onde dormem as melhores idéias, está o segredo... É o que surpreende no desfecho desta trama: como num sonho, um evento inesperado – insólito, eu diria – resgata a descoberta que aparentemente estava soterrada para sempre... Mas não vou contar o final da novela. Transcreverei – isto sim – um dos momentos que mais impressionam os leitores, aquele em que, para a nossa desgraça, o protagonista afirma que não somos muito diferentes dos animais – se é que não somos iguais ou piores: “Um dia o homem também deixará de existir. Os seres humanos são os únicos animais que caçam os outros da mesma espécie. Nem as hienas fazem isso. Sabem o que os bichos pensam de nós? Que somos os animais, enquanto eles são as pessoas”.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

INVISIBILIDADE

Uma das melhores histórias policiais que li foi O homem invisível, de G. K. Chesterton. No seu segundo nível de leitura, metafórico (se não filosófico), ele nos diz que o invisível é o que vemos todos os dias, aquilo com o qual já nos habituamos: nossa rua, as pessoas com as quais nos deparamos diariamente, a paisagem que se descortina de nossa janela, os parentes, os amigos, os conhecidos, o céu, o sol... De posse desse argumento inquestionável, o Padre Brown resolve um crime aparentemente insolúvel, que é o pretexto do relato, um dos mais duradouros, sem dúvida, do gênero policial.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

PALHAÇO

Conheci um sujeito que trabalhava como palhaço em festinhas infantis. Num dia de folga, ele ficou bêbado e acabou preso.
Quando o guarda lhe perguntou o que ele fazia, ele respondeu:
“Sou palhaço”.
É claro que não foi nem algodão nem gaze o que removeu de sua cara a maquiagem...


De Nem mesmo os passarinhos tristes, um livro de minicontos que estou engavetando.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

A SOMBRA DE UMA ESPADA


Quanto vale uma carteira de identidade?
Nada.
Tire uma pela manhã e outra à tarde.
Tire uma em cada Estado
E depois rasgue.
Quanto vale, no fundo,
A sua vida com tantos números?
Nem mesmo uma moeda.
Ou você é um cego – e o fazem de bobo –
Ou é um merda – e lhe dão descarga.
Somos eu e você agora descendo pelo esgoto?
Somos. Com a enorme vantagem
De que vamos soltos...
Brasil, Bahia, Rio – há quem goste disso.
Há até quem chore ouvindo “nosso” hino.
Também pelo que ouvimos aqui hoje...
“Ei, você aí! Me dá um dinheiro aí!”
Isto sim é a verdade, a nossa identidade.
Pedir. Pedir. Pedir.
Eu peço, você pede, o Presidente pede.
Ele então é quem mais “tira” identidade.
Uma pela manhã, outra à tarde
Para rasgar a ambas à noite, no porre.
Sabe? Volte, volte, volte até os portugueses
E ainda assim seremos muitas vezes
Nada, ninguém.
Ou a sombra de uma espada
Cravada no coração de um índio ou de um negro.
Este poema integra Os prazeres e os crimes. Um dos meus livros inéditos e engavetados.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

FOLGUEDO

Sabe o que somos para os políticos, para o governo? Essas pedrinhas lisas que eles, à beira-mar, em seus momentos de descanso, num arremesso preciso, fazem deslizar sobre a água, para o delírio de seus netos...

domingo, 14 de dezembro de 2008

FAZ SOL LÁ FORA

Não é raro que eu me decepcione com uma obra literária que foi para outra pessoa tão importante quanto o próprio dia do seu nascimento.
É assim, e não pode ser diferente.
Gostar de um romance ou de um poema requer uma história. E uma história compreende experiências pessoais, dias de chuva ou de sol, instantes ganhos ou perdidos, pessoas que amamos e que nos amaram ou que deixamos de amar, sentimentos perdidos ou jamais encontrados, desejos, desfeitas, medos, verdades incorporadas, outras renegadas, proibições terríveis e um punhado de fracassos que ao mesmo tempo detenham nossa presunção e alimentem nossos sonhos.
O que somos é que lê. O leitor é uma entidade, uma alma. Um fluido. Sabemos que está ali, dentro de nós, mas o controle que exercemos sobre ele é mínimo ou meramente funcional. É como água num copo: podemos bebê-la, derramá-la ou simplesmente deixá-la em estado de repouso. Nos três casos, porém, é a água que se faz, ou dentro de nós por canais orgânicos que a reclamam ou como matéria abandonada ao fluxo do espaço e do tempo.
Pois o leitor é um ser que se abandona. Uma substância que se deixa vagar.
Quanto mais tentamos controlá-lo, mais ele se desinspira. Se dilui, se tolda, se embota.
O leitor deve ir como as nuvens, ao sabor das aragens e do acaso, movimentos capazes de desenhar o impossível.
Leia um poema com a prevenção de chorar, e as lágrimas hão de se fundir em pedras a pesar em suas pálpebras. Leia com a intenção de se renovar como pessoa para si mesmo ou para o mundo, e isso não passará do que é, uma pretensão.
Certa vez, parei numa livraria com o objetivo de comprar um presente para minha esposa: um livro de arte. A suma de qualquer um dos pintores modernos que ela admira. E foi então que abri um livro de Paul Klee. Lá estavam várias de suas pinturas mais famosas, reproduzidas por todo o mundo. Uma, no entanto, e que eu jamais tinha visto, deteve-se diante de mim por efeito aleatório de minhas mãos, que passavam distraidamente as páginas: Flotilha, de 1925. Oito navios como que desenhados pela mão inábil de uma criança, um atrás do outro, a soltar fumaça, impávidos, num mar verde-azul sob um céu também verde-azul, borrados apressadamente ao que parece com lápis-cera. E foi então que meus olhos se umedeceram, e uma ou outra lágrima escorreu. Por que isso? Não sei e provavelmente ninguém sabe. Eu olhava aquela pintura quase ingênua, e algo se movia dentro de mim. Nascia.
Não basta ler as palavras ou decifrá-las, compreender as frases. É preciso senti-las nascer para a percepção do que somos, o toque especial deste fluido escondido que só se revela num contexto de absoluta liberdade e desprovido de prevenções e expectativas. Em arte é assim ou não é. Leitores competentes todos somos, mas sensíveis, só alguns. Aqueles que se deixam livres para incorporar. Para se descobrir num poema ou num conto, num romance ou num filme, numa peça teatral ou num quadro. Mas, se isso não ocorrer, tudo bem. A decepção também é uma leitura. É um erro transformá-la numa reação de superioridade e rancor: não cabe no centro da crítica, qualquer que seja ela, o ressentimento por um desejo não satisfeito. Nem tampouco se deve reduzir tal decepção à evidência de uma incapacidade: o leitor é e sempre será inocente. Sua condição de veículo o isenta de culpa. Ou ele recebe o impulso ou o ignora.
Nascida com o propósito de fazer o sujeito sentir impactos e preencher em si vazios tipicamente humanos, da própria espécie, a obra de arte o faz muitas vezes em ausência: não impactando, não preenchendo.
Este paradoxo é apenas uma conseqüência do que somos. E dos meios como a arte se expressa, na forma que é a própria extensão de si numa pessoa ou, em outra, excesso, dèja vu, limite transposto, experiência superada. E também não é culpa do artista se nos decepcionamos. “Estilo é a marca registrada de um temperamento cunhada em material disponível”, escreveu André Maurois. Era do que o artista dispunha e que, infelizmente, ficou aquém daquilo que nossa fluidez exigia, reclamava. Não houve soma, faltou catalisador. Passemos ao próximo livro ou ao próximo artista.
Após qualquer leitura, satisfatória ou insatisfatória, lembremo-nos de André Gide e sua preciosa recomendação:
“Quando acabar de me ler, largue este livro e saia. Eu queria que ele tivesse despertado em você o desejo de sair – sair não importa de onde, de sua cidade, de sua família, de seu quarto, de seu pensamento.”
Faz sol lá fora...


Pintura: Composição abstrata de casas, Paul Klee.

sábado, 13 de dezembro de 2008

NOMES & NOMES

Não é incomum que eu receba pelos Correios, esporadicamente, livros de ficção, poesia e até de crítica literária. Os autores, não raro, têm nomes assim: João Carlos Resende de Albuquerque, Sílvio Dantas de Oliveira Mauro ou Lídia Maria Santana Carvalho de Menezes. Durante um tempo, me perguntei quantos teriam, um dia, seus nomes reduzidos a Machado, Bandeira, Clarice, Drummond, Leminski, Cecília – sim, assim mesmo, tratados com esta intimidade de primos – ou grafados (e grifados) como no Oriente, pelo mínimo: Bashô, Li Po, Issa. Hoje, apenas me acontece lembrar esta frase de Marshall McLuhan: “O nome de um homem é um soco paralisante do qual ele jamais se recupera”.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

RECEITA PARA DEIXAR A CAVERNA: UMA IRONIA

Atualmente, para o sujeito ser escritor de sucesso é preciso que represente em sua arte alguns dos seguintes tipos ou então que se solidarize com eles.
1) O pobre com algo a dizer de muito chocante, de modo que desperte a piedade alheia e faça a multidão chorar, visando a uma adaptação cinematográfica produzida pela Globo Filmes, sob a direção de Guel Arraes.
2) O presidiário com alguma capacidade de análise crítica de corredores escuros e celas abarrotadas, e que seja capaz de confessar qualquer coisa, até mesmo que esconde ovo cozido na cueca.
3) O homossexual convicto, a arrotar com sarcasmo as vantagens de olhar para o outro lado da cama e praticamente se ver.
4) A mulher desbocada e disposta a expor publicamente seu apetite sexual, ainda que, no fundo, prefira manter a dieta.
5) O afro-descendente, a promover retaliação, e até racismo às avessas, em nome de reparação, revisão, reabilitação, reajuste... Arre, é tanto erre, que até parece que ligaram a moto-serra!
6) A prostituta – perdão, garota de programa – a depor voluntariamente sobre sua vida nem um pouco monótona, a variar da pose de bruços para a de costas.
7) O místico profissional, a nos propor auto-ajuda com sua experiência de frases-feitas e inócuas: “Olhe o horizonte”, “É em ti mesmo que está o sentido”, “O segredo é nada segredar”, “Voe, você pode voar: basta descobrir que pode fazê-lo”.
8) A feminista agressiva, a diminuir, em linguagem ácida do tempo de nossas avós e farta de epítetos jocosos, o que ela própria não possui entre as pernas.
9) O rico deslumbrado, a apresentar sua riqueza e seu suposto refinamento, sem aparente ostentação nem receio de seqüestro, numa mansão cheia de seguranças, cães ferozes e protegida por grade eletrificada.
10) O árabe sofredor, com seu irresistível cotidiano de fé e sangue, de fome e areia, de homens de quatro e mulheres sufocadas em mantos negros ao sol do meio-dia, de sedutores homens-bomba e carros do ano atulhados de explosivos até o teto.
11) O adolescente – homem ou mulher – que não consegue terminar uma única frase, escreve e fala por códigos, dança ao som de uma nota só, se julga moderno por falar palavrão, ainda mais moderno rindo ao efeito de um baseado e realmente um tipo de vanguarda ao ser grosseiro, estúpido e mal-educado.
Certamente me esqueci de dois ou três tipos marcantes, e não menos burlescos, que alimentam, com propriedade, o gosto literário de nossa época. Mas não importa! Os arrolados acima já nos dão a medida exata de nossa imaginação: nenhuma.
Ah, a literatura atual! Caracterizada por permitir que um determinado leitor se reconheça, e os demais, entediados, pulem as páginas.
Foto: maravilhoso trabalho do fotógrafo Moisés Gonzalez, reproduzindo em fotografia os quadros de Gustav Klimt.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

AUTO-AJUDA

Aos que me dizem que olhe o horizonte respondo que olho o horizonte e não vejo senão o horizonte.

Foto: Baía de Todos os Santos, por Mônica Menezes.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

SIMBIOSE

Para mim cinema é ficção, narrativa, um relato com início, meio e fim. Daí porque não curto muito assistir a documentários numa sala de exibição. Quando o cinema era só um experimento ótico ou cinemático, ele recorreu à literatura. Hoje, ele é narrativa com imagens em movimento e devolve à literatura muito do que esta lhe emprestou. As duas artes acabam, então, por se influenciar mutuamente. O dizer-mais-com-menos-palavras talvez seja, na ficção moderna e atual, uma influência do cinema. E a busca do cinema pela ambigüidade, com o duplo sentido, que amplie o significado do filme (e que o espectador mediano em geral abomina) talvez seja, no momento, o maior débito do cinema para com a literatura. O final de Encontros e desencontros, por exemplo, de Sofia Coppola, é um desfecho literário, tem uma dupla visada: não sabemos se os personagens marcam um encontro para breve, e assim pensamos que vão ficar juntos, ou se o cara simplesmente diz para a garota que a ama, mas que a união deles é impossível e que, de qualquer modo, logo ela o esquecerá ou encontrará outro mais interessante e mais jovem, de sua geração... A crença, assim, fica a cargo de quem vê e como sente o que vê. Subjetividade, metáfora, sentimento. Em duas palavras: arte, literatura.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

AMIZADE É COISA SÉRIA

Numa das melhores falas do filme Conto de verão, de Eric Rohmer, Solène, ao ser preterida por Gaspard em favor de uma amiga dele para um passeio de férias, diz que o compreende, pois: “Amizade é coisa séria... Talvez mais que o amor”. Será? No contexto do filme, esta é uma fala maravilhosa; no da vida, já não faz sentido. As amizades viraram cabides temporários para casacos de inverno molhados... E não duram mais que o intervalo de uma conquista, qualquer que seja ela... Passado o tempo das descobertas e depois o das decepções, das desavenças, elas prontamente morrem. E é bom que seja assim. É preferível. Menos um enigma à nossa volta, menos uma voz, menos uma esperança. Sou dos que caminham melhor sobre os escombros. Talvez por isso os filmes sobre o fim do mundo me atraiam tanto. Todos. É porque, de fato, bem lá no fundo, não acredito no gênero humano. Só acredito no Eu-digo, Eu-faço, Eu-posso, Eu-quero, pois é o que eu ouço e vejo todo o tempo. Só acredito no espírito ególatra, que é a verdadeira assinatura dos homens e a única confissão realmente autêntica, direta e espontânea. Neste momento, estou com dois – ou mesmo três – casos de amizade que vai morrendo. Mas, naturalmente, dois ou três novos se avizinham. Não sei até que nível, nem se vão se prolongar. Provavelmente não. O oportuno encontro de duas pessoas não tem qualquer importância, nem para frente nem para trás. É só um capricho do acaso, uma coisa que o vento traz e depois leva. Um incidente as uniu, outro incidente as afasta – sem piedade.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

NIVELAMENTO

A impressão de que estamos sozinhos no mundo, ou de que vivemos deslocados – e que pelo visto acomete a todas as pessoas com maior ou menor intensidade, conscientemente ou não – justifica-se com esta citação, de Gorki: “Em toda parte estás a mais... E pela simples razão de que toda a gente é a mais na Terra.” Exagero? Não. Um oportuno nivelamento de cunho filosófico, que conduz o gênero humano ao seu devido lugar.

Ilustração: Flor Opazo, para o livro Novecentos, de Alessandro Baricco (Rocco, 2000).

domingo, 7 de dezembro de 2008

PONTO FINAL

Há à nossa volta uma permanente melancolia, que é imóvel e transparente como o decorrer dos anos. Nada a apaga ou atenua. Para ela, mesmo os livros, os filmes, uma jovem amante são inócuos. Presente em todos os dias, mas perceptível apenas nos rápidos momentos em que nos ausentamos do mundo ou descansamos de nós mesmos, dilata-se nos domingos, especialmente os de chuva, de pequenos rios verticais a correr nas janelas, ou de céus brancos, libertos daquele azul de verão que hipnotiza até o mais fleumático dos homens. No fim, sua fadiga se confundirá com a nossa, e então, massa inútil e sem futuro, estaremos prontos.

Pintura: O chapéu amarelo (1991), de Aldemir Martins.

sábado, 6 de dezembro de 2008

LITERATURA E CINEMA

Fui primeiro ao cinema, só depois aprendi a ler. Até hoje me lembro do primeiro filme que vi: Esses homens incríveis e suas maravilhosas máquinas voadoras. Eu tinha quatro anos. Uma comédia com muita ação e trapalhadas, no ar e em terra. Só isso. Mas até hoje não a esqueci, embora nunca mais a tenha visto. Quase todos os dias assisto a um filme. Não posso passar sem esse ópio, como não posso passar sem ler nem escrever. E quando escrevo vejo o que escrevo, como se fosse uma câmera a varrer o ambiente, a definir a cena. Isso se deve, em grande parte, ao fato de que não consigo conceber uma prosa (nem mesmo poesia) que não reúna esses aspectos, para mim fundamentais: movimentação no tempo e no espaço (o que empurra a narrativa pra frente), metáfora e reflexão. E os três comparecem à narrativa cinematográfica, tanto quanto ao que escrevo. Um exemplo: Não tenho medo, de Salvatores, baseado no romance de Nicollo Amantini. Neste filme, a narrativa está sempre em movimento; no espaço, com o vaivém do garoto na bicicleta, e no tempo, com a passagem dos dias, marcada pela troca de suas roupas. O filme é uma metáfora da amizade possível entre pessoas divididas por diferenças inevitáveis: neste caso dois garotos de classes e meios diferentes. E uma reflexão sobre as nossas ações nesta vida, o que pretendemos e ao fim conseguimos, e que no filme podemos definir assim: quando ferimos o outro estamos ferindo a nós mesmos. Ao seqüestrar o garoto e tentar matá-lo, o pai não sabe, mas está ferindo ao seu próprio filho... Em meus contos (ao menos em desejo, em intenção), há aquela movimentação constante, um ciframento a ser iluminado pelo leitor e uma reflexão, ou pela imagem ou pelas palavras. Num dos que mais apreciei escrever, Victor Vhil leva uma surra de uns garotos na praia e, ao cair, tem a impressão de que é o mundo que tomba. É uma imagem de sua queda, o que seu olhar percebe ao cair, mas também uma metáfora e uma reflexão: não é o agredido quem cai (também no sentido de involuir), mas o mundo que o espanca, representado por aqueles garotos.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

TODO HOMEM É UMA VASILHA

As pessoas não nos julgam pelo que somos, mas por não nos parecermos com elas, não pensarmos como elas; por encerrarmos outro ponto de vista, outra memória, outra experiência que elas jamais admitem existir e que, não satisfeitas, pretendem invalidar em favor de si mesmas. Por que Machado de Assis não é Kafka, nem Curzio Malaparte, Dostoiévski? Por que eu não sou você? Nem você é o poetastro que vende seus livretos de mesa em mesa, no bar? O cineasta Ingmar Bergman tem a resposta: “Tuas palavras servem à tua realidade; as minhas servem à minha. Se trocarmos as palavras, elas passam a não valer nada”.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

IT’S NOW OR NEVER

Quando coloco um disco de Elvis Presley para tocar, minha mãe geralmente diz, com enfado: “O homem já morreu...” O mesmo se dá com Elis Regina ou com um filme de Marilyn Monroe. O artista que morreu deve ser esquecido, sepultado com tudo o que fez e criou – parece que esta é a lógica. E não somente de minha mãe, com suas sete décadas de vida e sacrifício. É o que pensa muita gente, e bem mais jovem. It’s new or nothing.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

O SIMPLES

O que nos faz gostar de um texto, um poema, um romance, um conto, um quadro, um filme? Nem sempre estética é suficiente, eis a verdade. Segundo o escritor dinamarquês Hans Jorgen Lembourn, gostar ou não de uma obra de arte “depende do que se espera, do que se quer, de como se é”. Por exemplo, no livro Duas existências, de Jean Giraudoux, que reúne suas anotações diárias da juventude e da velhice, há um apontamento que não me canso de ler, há quase vinte anos, embora para algumas pessoas não signifique absolutamente nada:
“Villegouin, segunda-feira de Páscoa, 1892.
Uma bonita nuvem.”
O que tais palavras nos dizem? Que o jovem Giraudoux olhou para o céu e viu uma bonita nuvem, e que isso foi tudo o que lhe aconteceu naquele dia ou talvez o que de mais importante lhe aconteceu, a ponto de merecer uma anotação em seu diário? Talvez. E para mim o que elas significam? Sinceridade, naturalidade, espontaneidade, sensibilidade, poesia. Ou tão-somente a evidência de que muitas vezes a beleza – e o efeito que ela proporciona – não está na invenção, mas na surpresa, na imprevista aparição do simples num contexto em que se espera encontrar o exótico, o frenético. Muito do que escrevo tem esse propósito, mas só muito raramente chego a um resultado satisfatório. Talvez porque a profundidade do simples seja, em si, a mais difícil de alcançar.
Bem-aventurados os que conseguem.


Pintura: Summer landscape (1917), de Egon Schiele (1890-1918).

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

HOJE

Um dia diferente. De sol, de trabalho, de dor, mas diferente, singular... Singularidade que está dentro de mim e de cada um de nós, e que, de súbito, sem motivação alguma, nos sobe e nos anima a continuar vivendo, apesar de tudo.

Foto: cena de 2046, de Wong Kar-Wai.