"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sábado, 31 de janeiro de 2009

BALADA DA BLACK DAHLIA


Neste momento, no Rio de Janeiro, há uma bala perdida...
Não pior do que em Virgínia, nos Estados Unidos.
Quando a Dália Negra foi achada sereia num terreno baldio
Não foi a primeira nem a última.
Outras rodam e rondam como mariposas
Até que a luz de uma lâmina as remova.
E somente serão lembradas se forem bonitas
Ou se, sempre de preto, motivarem apelidos: Dália Negra...
Vinte e dois anos, 1,60 de altura, cabelos pretos
E todo um mundo surpreso com seu tronco partido ao meio.
O que ela fez e sofreu é pó nas estrelas e centelha para o desejo e o juízo.
– Minha vida por uma Dália Negra inteira
Por uma Dália Negra garçonete que ia e vinha
E que buscava em cada cara sua primeira carícia...


De Os prazeres e os crimes. Foto: cena do filme Dália Negra, baseado no romance de James Ellroy, e que recria o trágico destino de Elizabeth Short (1924-1947), a Dália Negra.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

O LONGO ABRAÇO

Pessoas se encontram por acaso e seguem a se encontrar por afeição. Até que lhes reste somente a memória ou a fria palma da mão.

De Os prazeres e os crimes. Quadro: O abraço (1917), de Egon Schiele.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

SUICIDA

Foto: Nathy Silva.

Desce de bicicleta em velocidade
A rua em contramão

Desce
E por um instante julgo que fecha os olhos
Ao vento que lhe corta o rosto

Carros cortam à sua volta
(Quem vai fazer os carros parar? Quem?)

Não é moça
Não é rapaz
Não é ninguém

É só uma folha que cai.

De Os prazeres e os crimes, volume de poemas sem previsão de publicação.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

PARTIR

As estradas que vão para o nada.
A distância que as empurra ou retém, não sei.
Olho a amplidão à minha volta e penso em desistir.

Mas preciso estar livre, solto, fora destas amarras,
Como a chuva que cai e corre e desaparece sob a terra.
Sem isso, a vida (ou a alma)
É como uma sala fechada e sem janelas.

É certo que antes de partir preciso mover os pés,
Um após o outro, as pernas a apoiar o peso que sou
E que só em raras ocasiões movimento.

Mas o que aprendemos ao partir ou ficar?

Que somos amados ou odiados, com certeza,
E que sonhar talvez seja a única recompensa –
Versos pelos quais me empurrarão lições de estética.


De Os prazeres e os crimes, volume de poemas sem previsão de publicação.
Foto: Alison Brady, cujo estilo resgata o surrealismo da Pintura Moderna.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

SEIS GAVETAS E NOVE FUGAS

Já está mais do que na hora dos leitores conhecerem algumas verdades sobre o não-autor deste blogue. Para quem não sabe, meu nome é Victor Vhil. Sou a criatura, e ele, o criador, mas, cá entre nós, quem escreve muito do que ele atribui a si mesmo sou eu. Este texto é uma tarefa obrigatória (da qual ele se esquivou) por ter sido indicado pela Gavinhas e pela Bípede, suas leitoras. Então, como sempre, sobrou para mim. Bem, abrindo as gavetas:

1. O cara é escritor, mas não gosta de escrever.
2. Tem saudade de países nos quais jamais esteve, como Itália, França, Austrália e Hungria...
3. Gosta de ler livros sobre naufrágios, acidentes aéreos e crimes reais: deve ter morrido em algum...
4. Fotografias ou quadros de paisagens ou situações cotidianas são seu fraco: Corot, Pancetti e Hopper, por exemplo.
5. É distraído, às vezes bastante distraído, a ponto de enxugar o rosto com o tapete do banheiro achando que era a toalha de rosto...
6. Eventualmente é tomado na rua por outra pessoa, e certa vez conversou mais ou menos uns dois minutos com um sujeito, que lhe fez várias perguntas: como estava fulana, se ele encontrara recentemente com beltrana – só mulheres. E ele, constrangido, ia dizendo: “Vai bem”, “Legal”, "Não". Foi desse episódio que ele extraiu o argumento do conto O inédito de Kafka.

Depois destas revelações, é quase certo que ele não me colocará em mais nenhum dos seus contos. Estou literalmente desempregado. Mas agora a Inês é morta. Fechemos, portanto, o caixão, revelando nove blogues para onde ele foge às vezes, por pura falta do que fazer ou preguiça de melhorar seus livros em curso ou engavetados:


Imagem: meme-selo.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O HOMEM QUE TEVE SUA CHANCE

Pela manhã foi ao sebo e, por acaso, achou um Graham Greene: uma peça teatral – talvez a melhor que o autor escrevera –, em edição antiga, de 1960.
Depois foi ao banco, torrar o pouco de dinheiro que lhe restava.
Almoçou, cochilou por quinze minutos – ali mesmo no restaurante, a cabeça recostada à parede – e saiu para o trabalho.
A caminho, ao atravessar o semáforo, avistou do outro lado da rua uma pequena multidão em volta de um homem caído, coberto com um pano branco, os policias a controlar impacientes o ânimo de quem permanecia vivo e se deleitava em contemplar a corporificação da morte.
Foi adiante, mal dando importância ao fato, sem saber que esta havia sido a sua última chance de agradar a morte – admirando-a.
Jamais chegou a ler aquele livro usado, comprado a preço ínfimo e cujas páginas ainda se mantinham grudadas...


Foto: cena de Cloverfield (2008), de Matt Reeves.

domingo, 25 de janeiro de 2009

SABER LER

Henry Miller sobre Picasso: "As pequenas fraquezas que o fazem parecer ridículo fazem-no também deliciosamente humano". Esta generosa citação nos faz recordar Faulkner, quando ele recomenda que não devemos jamais julgar uma pessoa ou um ato, mas sim tentar compreendê-los, sempre. Compreender é o que importa. É o ato imprescindível. A postura elevada; restrita, porém, a uma pequena fração da humanidade.
Demanda muito menos tempo e esforço ser sarcástico ou irônico ou desdenhoso, como o sujeito anônimo que me escreveu me chamando de cavalo (uma ofensa ao animal), porque usei a seguinte construção num dos meus minicontos da dupla Nicolau & Ricardo: “E não há nada neste mundo, naquele momento, que seja mais preciso, mais exato, que a imaginação daqueles dois”.
Acredita ele que os adjetivos “preciso” e “exato” têm o mesmo significado, são sinônimos. Ora, são e não são. Da forma como estão associados, são ao mesmo tempo uma reiteração e um acréscimo. Infelizmente, nem todo mundo “sabe ler”. E não é por culpa pessoal. Muitos são os fatores, em nosso tempo, que desfavorecem a leitura (ou a leitura correta, que reúne senso crítico, sensibilidade, referências, conhecimento), e o pior de todos talvez seja nos convencer de que aquele que escreve não sabe escrever.


Foto: Clark Gable, com um dos atores, num intervalo das filmagens de Os desajustados (1960), de John Huston.

sábado, 24 de janeiro de 2009

AH!

Um dia desses, me perguntaram por que não escrevo nada profundo... Profundo? Quem foi, quem é, quem será? Machado de Assis? Joyce, Proust, Pessoa, Tchekov, Kafka? Ou os menores: os poetinhas do rigor e da forma, que ainda acreditam que poesia é métrica, rima e um verso lapidar, que luz só em suas cabeças? Profundidade é a parte que o leitor comum não compreende e o leitor arrogante julga que decifrou. Duas ilusões. Nascidas, a primeira, de um superestimado pesadelo, e a segunda, de um sonho de grandeza. Do ponto de vista do criador, é exatamente a consciência de que é preciso buscar uma profundidade que a anula e nos faz rasos, quando não ridículos, piegas. Abençoados os rasos conscientes. Não sou um deles.

Foto: Nathy Silva.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

CLARÃO

Li meses atrás um romance policial bem comum e elementar, sem nenhum diferencial relevante, nem de forma nem de linguagem, menos ainda de assunto, o tipo de relato que a autora, Mary Higgins Clark, escreve com o propósito de consolidar sua estima junto aos leitores do gênero – menos exigentes a cada nova geração – e mais tarde vendê-lo ao cinema. O título, A stranger is watching, recebeu no Brasil o seguinte acréscimo: Alguém espia nas trevas. Pois bem, mesmo este livro, que é quase um logro (com meia dúzia de equívocos visíveis e sua enfadonha opção pelo suspense), apresenta em seu desfecho um excelente momento, quando a bomba volatiliza o vilão: “Houve um clarão ofuscante, um fragor que lhe despedaçou os tímpanos, e ele foi atirado à eternidade”. Isso só ratifica o que afirmou Borges certa vez: que mesmo o mais medíocre dos poetas é capaz de perpetrar um verso que seja uma obra-prima. Ou duas linhas de excelente prosa. Um clarão nas trevas.

Foto: Sol sobre Itaparica, de A. Café-Gallo.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

RETIRO

Nestes tempos de tanta rivalidade – e de pessoas que não consideram os meios nem medem os esforços para estar em evidência –, me ocorre que o fracasso é o melhor dos lugares: ninguém em volta, silêncio, retenção, paz absoluta e só nós mesmos com as nossas dúvidas...

Foto: Francesca Woodman.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU E RICARDO, DETETIVES

16. Perseguição

Na BR 324, Nicolau e Ricardo seguem a pista de um escroque. Param num restaurante à beira da estrada e bebem, enquanto o observam. Mas não observam o suficiente, pois não vêem quando o bandido foge no carro deles...


FIM DA PRIMEIRA TEMPORADA

Foto: Nathy Silva (outono de 2007).

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU E RICARDO, DETETIVES

15. O engano

Corria. Corria. Às vezes parava e, detrás de um poste ou de uma parede, revidava os tiros. Não saberia dizer se acertou alguém, não viu cair nenhum de seus perseguidores.
Atravessou a linha do trem, entrou pelo mato, chegou a um muro – e foi então que sentiu a picada, só isso, uma picada, seguida de uma expansão quente, e de uma sucessão de imagens, intercaladas pela fisionomia irreal daqueles dois policiais que o perseguiam.
Nem percebeu que estava no chão, imóvel. Ouviu passos, gritos de que estava caído, alvejado e:
– Esta morrendo... – disse o policial mais velho.
– É – resmungou o outro, que – lembrou de repente – chamava-se Ricardo da Luz.
A primeira mulher que amou. O rosto de sua mãe. O quarto onde se escondia com seus gibis. Ondas. Pipas. A fanfarra de pombos diante do Elevador Lacerda... O coelho de sua irmã. Morto.
O nada. A sensação inequívoca de estar nascendo.


Mais amanhã. Foto: Marcelo Reis, do livro Etnologia da solidão (2006).

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU E RICARDO, DETETIVES

14. O exame

Outro crime na cidade. O desaparecimento de um grupo de turistas, dos quais só se encontrou um único braço, jogado no lixo e já meio comido pelos insetos.
“Carne branca” – é Ricardo quem fala, em sua mulatice.
“Bonita... nova... de mulher...”, Nicolau continua.
E não há nada neste mundo, naquele momento, que seja mais preciso, mais exato, que a imaginação daqueles dois.


Amanhã mais um episódio. Foto: de autoria da fotógrafa norte-americana Francesca Woodman.

domingo, 18 de janeiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU E RICARDO, DETETIVES

13. Fim do diálogo entre dois homens

Nicolau e Ricardo entram num boteco da Barra, pedem uma bebida e tentam relaxar. Não estão para muita conversa. Tiveram um dia difícil, cheio de interrogatórios inúteis, de pistas falsas, de testemunhas dissimuladas, de suspeitos sarcásticos. Meio chutado, embora o tom grave, quase filosófico, Nicolau diz:
“Há no fundo de toda mulher o desejo repulsivo de bancar a prostituta”.
“Mesmo sua mãe, sua mulher, suas filhas?”, Ricardo brinca.
Nicolau se levanta bruscamente, não diz uma palavra sequer e, sem olhar o amigo, sai. São os nervos. Os nervos. Há três semanas que Nicolau e Ricardo chafurdam num caso de difícil solução, por causa do persistente silêncio de algumas mulheres.
Madrugada. As primeiras manchas de sol.
O dono do boteco baixa com estrépito uma das portas de aço, e Ricardo ainda está lá, diante do seu copo...


Continua amanhã. Quadro: Aves noturnas (1942), de Edward Hopper.

sábado, 17 de janeiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU E RICARDO, DETETIVES

12. Pontos íntimos

Nicolau e Ricardo investigavam o enforcamento do gerente de uma loja de moda íntima. O crime acontecera depois do expediente, no mezzanino da loja, num dos shopping centers mais tradicionais de Salvador. O corpo foi encontrado nu, ainda com vestígios de uso em seu instrumento... A arma do crime? Ligas.
“Assim até eu gostaria de morrer!”, comentou Ricardo.
Nicolau não respondeu. Observava a cena, investigava-a. Depois de um tempo, um longo tempo, retrucou:
“Se o assassino foi uma mulher, vá lá! Mas há vestígios de esperma em dois outros pontos – um bem íntimo...


Amanhã tem mais. Desenho: representação da atriz francesa Beatrice Dalle.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU E RICARDO, DETETIVES

11. Acordo noturno

Nicolau e Ricardo voltavam de madrugada pela estrada deserta. Ricardo dirigia sonolento, enquanto Nicolau fazia o impossível para manter o parceiro acordado. Na escuridão em volta, só raramente uma luz cortava o céu, sem que os dois a percebessem nem fizessem qualquer pedido – não eram mais crianças, não se deixavam iludir. A única estação de rádio cujo sinal chegava até eles acabara de sair do ar. Nicolau consultou o relógio, e foi neste precioso momento que avistaram a mulher, mas era impossível parar... O baque, mais físico que auditivo, os fez estremecer: BRONC! Desceram e comprovaram que a vítima estava no fim, morrendo, que não havia nada que pudesse amenizar seu sofrimento, nem o deles. Então voltaram ao carro e foram embora. Mais adiante, um grave acidente – do qual não se viam senão os veículos, com os faróis ainda acesos, emborcados no acostamento – justificava a atitude da mulher lá atrás, a caminhar tonta pelo meio da pista. Eles prosseguiram velozes, sem se voltar, e nunca mais falaram daquele episódio. Por mais de um mês, nenhum dos dois abriu os jornais.


Mais amanhã. Imagem: cartaz "eslavo" do filme Wild at heart (1990), de David Lynch.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU E RICARDO, DETETIVES

10. Galinhas

Nicolau e Ricardo interrogavam uma velha senhora. Ela estava falando, ou melhor, discursando, com todas as pausas perdidas de sua geração:
“Eu o vi, da última vez, olhando as galinhas. Diante das gaiolas, a todas examinava atento e impassível. Não sei o que pretendia, se comprá-las ou retê-las na mente... Mas, de qualquer modo, é certo, fosse o que fosse, seria a vida de novo para ele que desde moço e para sempre viu-se viúvo...”
“Bem, garanto que as galinhas que ele violentou e degolou não eram essas...”, comentou Ricardo, com sarcasmo.
“Não entendo...”, a mulher disse, encabulada.
“Deixe pra lá, senhora. Era só isso”, encerrou Nicolau.


Amanhã novo episódio. Foto: de autoria da fotógrafa norte-americana Francesca Woodman.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU E RICARDO, DETETIVES

9. O detalhe

A Páscoa de Nicolau e Ricardo foi interrompida pelo assassinato do poeta Bidu Laranjeira. O principal suspeito: o colérico estudante e aspirante a crítico literário Lu Renard, de tantas tertúlias com o falecido.
Ricardo (com um sestro de desprezo nos lábios): “Não foi ele”.
Nicolau (um ponto de interrogação em busca de uma frase): “?”
Ricardo (com ar superior, explicando): “Seria como eliminar a máquina de refrigerante, o pipoqueiro, o sorveteiro; atirar no lixo o brinquedo querido... Não, não foi ele”.
De fato, dias depois, o assassino: uma mulher. Bem, quase... Por um detalhe.


Continua. Imagem: cartaz do cultuado Não conte a ninguém (2006), de Guillaume Canet.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU E RICARDO, DETETIVES

8. Interlúdio

Nicolau e Ricardo estão envolvidos com um misterioso crime de seqüestro. Mas Ricardo está apaixonado...
Nicolau chega e pergunta como estão as coisas, como vai o caso.
E Ricardo, distraído:
“Ela me ama...”
A série continua. Foto: cena do filme Tadpole (2002), de Gary Winick.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU E RICARDO, DETETIVES

7. A certeza

Nicolau e Ricardo investigavam o assassinato de uma adolescente, recém-ingressa na universidade. Todas as pistas conduziam ao pai.
“Mas não foi ele”, disse Nicolau, com uma firmeza que fez Ricardo se calar.
De fato, ao fim de três dias de investigações, deteve-se um pretendente da moça, que, depois de assediá-la e ser preterido, a violentou e matou.
“Por que tinha certeza de que não era o pai?”, Ricardo perguntou, uma curiosidade juvenil no semblante.
Caía uma chuva fria e miúda, que, no entanto, não os impedia de caminhar lado a lado. Na rua deserta e mal-iluminada a noite era triste. Nicolau falou sem olhar o amigo:
“Ele não era o pai... Só no papel... Não seria incesto. Cê sabe, depois de Freud ficamos conscientes.”

Mais amanhã. Foto: cena do filme Anjos exterminadores (2006), de Jean-Claude Brisseau.

domingo, 11 de janeiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU E RICARDO, DETETIVES

6. Rotina

Ao sol forte da manhã, Nicolau e Ricardo desviraram o corpo jogado de bruços sobre as pedras ainda úmidas de água salgada. Pela abertura do vestido, viram o pênis.
“Opa, mas é um homem!”, surpreendeu-se Nicolau.
“Menos um”, ironizou Ricardo.


Continua amanhã. Quadro: Colina com Farol (1927), de Edward Hopper.

sábado, 10 de janeiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU E RICARDO, DETETIVES

5. Balanço de Verão

Nicolau e Ricardo querem férias, mas o crime não pára. Nicolau e Ricardo estão cansados, mas os criminosos tiram energia do sol e se renovam como insetos. Nicolau e Ricardo gostariam de passar três semanas na praia vivendo só de vento e mar, mas os criminosos preferem prensar cédulas e contar papelotes. Nicolau e Ricardo gostariam de ir para a cama todas as noites à mesma hora e amar suas mulheres, mas os criminosos passam as noites em claro e, firmes como rochas, volúveis como água, só raramente cedem aos encantos de um ventre. Nicolau e Ricardo acham que, no fim das contas, pesados os extremos, os criminosos levam vantagem.
“Talvez até sejam mais felizes...”, Nicolau reflete.

“Livres, sem dúvida”, conclui Ricardo.

Mais amanhã, sem falta. Foto: a atriz Gail Russell (1924-1961), hoje quase esquecida, num verão qualquer dos anos 1950...

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU E RICARDO, DETETIVES

4. Nepotismo

Nicolau e Ricardo foram chamados para resolver um caso numa cidade do interior – Póci. A cidade é tão pequena que não tem delegacia. Quer dizer, a delegacia funciona num anexo da prefeitura, também residência do prefeito.
“E onde está o delegado?”, perguntou Nicolau.
“Sou eu mesmo”, respondeu o prefeito.
Nicolau e Ricardo se entreolharam.
“E o corpo policial? O senhor tem um corpo policial, não tem?”, perguntou Ricardo.
“Tenho sim, minha guarda pessoal, formada pelos meus três filhos.”
Novamente os olhares dos detetives se encontraram.
“E afinal quem morreu?”, suspirou Nicolau.
“Minha mulher.”
“Sua mulher...?”
“É.”
“Como?”, inquiriu Ricardo.
“Assim”, o prefeito passou o dedo no pescoço, provavelmente querendo dizer: garganta cortada.
“E quem seria o assassino?”, Ricardo de novo.
“Dizem que sou eu”, o prefeito confessou, com naturalidade.
Nicolau e Ricardo pularam do sofá, como se alfinetados nos subúrbios... Houve um silêncio constrangedor, e que os maus autores denominariam pesado. Os dois olhavam fixamente o prefeito, que lhes devolvia o espanto, impassível.
“E onde vamos ficar?”, Nicolau perguntou, conformado.
“No hotel.”
Já sem paciência, Ricardo aumentou o tom de voz: “E onde fica o hotel?”
“Aqui mesmo”, e o prefeito fez um largo movimento de queixo em direção à escada, que conduzia ao segundo andar da prefeitura...


O seriado continua. Quadro: Caim ou Hitler no inferno (1944), de George Grosz.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU E RICARDO, DETETIVES

3. O fugitivo

Nicolau e Ricardo perseguem um delinqüente que, de súbito, à porta da delegacia, escapou de suas mãos.
Depois de uma quadra de perseguição e fuga em meio ao trânsito de pessoas e carros, Nicolau, que é mais velho e há tempos esqueceu os exercícios físicos, pára para tomar fôlego. Ricardo, que ainda poderia continuar, faz a mesma coisa. E ficam os dois, curvados com as mãos nos joelhos, olhando o chão e respirando. Ouve-se um alarido de freios e em seguida o baque surdo de um impacto. Ricardo sorri. Correm na direção do acidente.
“Punição!”, diz Ricardo, certo de que a vítima foi o fugitivo.
Não. Foi uma mãe, com seu bebê. Este, sobre um tapete vermelho, ainda treme a mãozinha (não se sabe até quando), enquanto a mãe, caída na calçada, contempla a vitrine de uma loja com o olhar vítreo.
Ao longe, no fim da rua, o fugitivo ainda corre...


Amanhã, o quarto episódio. Imagem: detalhe da capa da edição portuguesa de Down there, de David Goodis.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU E RICARDO, DETETIVES

2. Sexta-feira à noite, depois de tudo

Nicolau e Ricardo acabaram de solucionar um longo e difícil caso. Chegam a um restaurante para comemorar e, já acomodados à mesa, telefonam às suas mulheres. Nicolau é casado; Ricardo, noivo. Não estão em casa. Por um instante parecem desanimados, mas logo se recuperam.
“Marina hoje tem analista”, diz Nicolau.
“O analista hoje tem Sônia”, replica Ricardo.


Amanhã tem mais. Quadro: Os jogadores de cartas (1890-2), de Paul Cézanne.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU E RICARDO, DETETIVES

1. Desperdício

O crime aconteceu ao anoitecer, na garagem de um imponente edifício da Graça. Nicolau e Ricardo acorreram imediatamente, mal a polícia recebeu o chamado. Pegaram o corpo ainda morno. Uma mulher, jovem, bonita, só com a peça superior do biquíni. Voltava da praia. Entre os seios, dois buracos vermelhos. O assassino avançara o carro contra o portão da garagem e fugira.
Ricardo ficou olhando a pele branca e macia. Depois parou um dos policiais que transitavam pela garagem e perguntou, sério:
“Sabe se houve estupro?”
“Parece que não”, respondeu o outro, sem hesitar.
“Que desperdício!”
“É...”
E os dois ficaram ali, com os olhos cravados na mulher, sonhando.


Continua amanhã. Seriado incluso no livro Nem mesmo os passarinhos tristes.
Imagem: cartaz americano do filme O homem que amava as mulheres (1977), de François Truffaut.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

A PONTE

Qualquer decepção de leitura tem uma história e quase sempre esta não pode ser remontada. Contrate o melhor detetive, que ele ainda assim não será capaz de dizer, ao fim, por que motivo você não gostou de Dom Casmurro ou odiou Fogo morto. A mesma regra se aplica a um filme ou à recepção de um quadro ou de uma música. Algo que nos aconteceu ou aquilo que jamais nos aconteceu talvez explicassem aquele vazio, ao virarmos a última página de um romance ou ouvirmos os primeiros acordes de uma canção. Mas como encontrá-los? Não somos capazes de ir tão longe dentro de nós mesmos... Infelizmente. Ou felizmente, talvez. André Gide disse, indiretamente, que a leitura – toda leitura e, por conseguinte, toda recepção em arte – é um ato de sair: se não de nós mesmos, do que nos aprisiona. Terminamos um romance ou um conto com a sensação de que fomos ultrapassados ou reduzidos. Ou de que a vida não vale o ar que respiramos ou, pelo contrário, que vale qualquer esforço, o mais absurdo dos sonhos de um sonhador ainda mais absurdo que os sonhos absurdos que ele sonha... Que a vida é ironia e dor e qualquer outra coisa. A nossa impressão (boa ou má) de uma obra de arte – pictórica, verbal ou qualquer outra – pode ser debitária de um único dia de nossas vidas: um dia vivido ou sonhado e sem o qual eu não teria alcançado o fulgor deste momento em que leio um poema ou aprecio um Matisse. E cada dia é como a seção de uma ponte sem a qual não se pode chegar à seção seguinte. Portanto, a nossa vida lê a arte, que, por sua vez, lê a nossa vida e nos oferece a sensação ou de perda ou de acréscimo. O filme que eu admiro guarda um pedaço de mim sem que nem eu mesmo o saiba. Mas eu estou lá, em Acossado: na traidora Patrícia, no aventureiro Michel.

Imagem: cartaz de Acossado (1959), de Jean-Luc Godard.

domingo, 4 de janeiro de 2009

RÉPLICA BENÉFICA

TANGO

Não há receita garoto

Não controlamos o acaso
Nem o nosso destino

Nem adianta tampouco
Tocar um tango argentino

Um ano é como um sonho em que vamos
Para outro no qual vagamos

Sem acréscimo nem volta
Ao espaço de uma porta

Este poema é uma réplica (benéfica) ao post . Imagem: detalhe da ilustração de Guy Pellaert, para o CD Astor Piazzolla Tango Nuevo Tango, da Jade-Milan (1993).

sábado, 3 de janeiro de 2009

ORELHAS

Victor Vhil soube que Mimi Asno – contista – admirava um livro que ele também admirava. Ficou surpreso. Não por ele admirar o livro, mas por conseguir lê-lo...

In: Nem mesmo os passarinhos tristes.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

VERMELHOS E AZUIS

Há quem goste de Cuba por sua coragem política ou força esportiva. Há quem a odeie pelos mesmos motivos, mais a soberba. Para mim não passa de uma ilha com nome de tacho... Portanto, estou me lixando para Fidel e seus epígonos – e mais ainda seus inimigos! São mais importantes e úteis os sonhos dos passarinhos.
Imagem: foto de autoria anônima, reproduzida em calendário da Loteria Vitória, Vitória da Conquista, BA, 1999.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

CANETA E PAPEL

Algum otário publicou uma crítica elogiosa ao livro de Mimi Asno. Este fez várias cópias do texto e enviou para as pessoas. Victor Vhil também o recebeu... Felizmente ainda estava no saguão do prédio – abrindo o envelope –, quando uma mulher passou e perguntou se ele tinha caneta e papel. O papel estava em suas mãos... Quanto à caneta – só lhe restou entregar a Parker que fora de seu pai, e que a mulher jamais lhe devolveu... Mas, lembrando de Mimi Asno, ele pensava: melhor perder a riqueza que a vergonha.
Miniconto do livro Nem mesmo os passarinhos tristes.