"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

AS AVENTURAS DE NICOLAU & RICARDO: DETETIVES

1. O BOM BANDIDO

Ele vinha descendo das montanhas para o mar. Nas mãos e nos pés doíam-lhe as feridas. O ar fresco, à medida que ele se aproximava de seu destino, banhava-lhe o rosto de um inesperado alívio. Não o suficiente, no entanto, para que pensasse em perdão. Pelo contrário. Prestes a alcançar a areia e o mar e o elemento que fora, talvez, o catalisador do seu nascimento, de sua queda, ele pensava, citando qualquer autor: “Todos os homens são para mim milagres que eu gostaria de esquecer, velas que acendi para o nada”. E foi com esse espírito que ele desapareceu sob as ondas, sem olhar para trás, antes que Nicolau e Ricardo o alcançassem...
Início da SEGUNDA TEMPORADA. Semana que vem tem mais. Capa da edição francesa de Jim Thompson, romancista noir norte-americano.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

A BEM-AMADA

O romance A bem-amada, de Thomas Hardy, metaforicamente evoca as estações da vida. Filosoficamente, lança uma teoria: amamos o amor; a Bem-Amada é uma entidade que aparece num corpo e num rosto, fica por um tempo a nos seduzir e enredar, vai embora de repente, mas um dia retorna, sob os mesmos encantos da primeira ou última aparição. Amamos, portanto, a Bem-Amada, essência sempre presente, recorrente, “substância intangível” em espírito, sonho, frenesi, conceito, aroma e resumida, metonimicamente, a “uma síntese do sexo, uma luz do olhar, um separar de lábios”. Aquela presença que “nunca estava em dois lugares ao mesmo tempo; e até aquele momento nunca permanecera por muito tempo num só lugar”. Lugar leia-se por “ser”, “pessoa”, “mulher”. Estilística e tematicamente concebido no e para o século XIX, A bem-amada tem – sem o favor de nenhum gosto de época ou moda de passagem – o requinte da eternidade.

Capa da edição brasileira (São Paulo: Códex, 2003), com tradução de Luís Bueno e Patrícia Cardoso.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

NINHO VAZIO

O filme argentino Ninho vazio, de Daniel Burman, é metalingüístico. Também é uma aula de criação literária, mais precisamente de narrativa.
Passa-se quase todo entre duas seqüências menores, que o enquadram. É, assim, uma narrativa dentro de outra narrativa, uma ficção fechada no espaço de outra ficção: aquilo que em Teoria da Literatura chamamos de relato enquadrado. E a narrativa que constitui verdadeiramente o filme, o Ninho vazio, é a trama que o dramaturgo imagina enquanto espera que sua filha volte da noitada de sábado com o namorado.
Nesse ínterim, ele cria o argumento de uma história que pretende escrever, e é esta história, ainda em estado mental, que se constrói diante de nós – no decorrer do filme –, tendo o próprio escritor como protagonista, e girando sempre em torno de sua biografia, alterada, porém, pela habilidade que ele próprio, como autor, tem de distanciar o que está perto e aproximar o que está longe.
A trama se resume a um desfilar de motivos que lhe foram oferecidos pela própria vida e por aquela noite, passada no restaurante com os amigos de faculdade de sua esposa: o médico psiquiatra que ele conhece na mesa e com o qual mantém uma conversa à parte e que se torna seu conselheiro; a garota que ele entrevê na mesa ao lado e pela qual, ao menos por um instante, se apaixona; a menção por parte da esposa ao namorado da filha, que também seria escritor e ganha relevo na história como um contraste ao pai-autor-chato; o recorrente CD de música francesa, que acaba por ser o elemento que nos revela a natureza ficcional ou onírica daquela seqüência de breves e bem-humorados fatos cotidianos e familiares... E o mote do filme, largado no início por um fortuito comentário de um dos convivas, mais ou menos assim: no fundo sempre há influência biográfica. Claro! Mas não como repetição. Escrever e filmar é fazer reviver, preencher de novo o ninho já vazio, mas sempre de outra forma, jamais alcançada pela vida: “No mesmo rio entramos e não entramos; somos e não somos”.
Por tudo isso foi que, ao fim da sessão, comentei com um amigo que Ninho vazio era um filme atraente, despretensioso, preciso e sofisticado. Como quase tudo o que a Argentina tem produzido ultimamente, tanto em cinema quanto em literatura.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

BISNETOS DE CLARETE

Todo leitor de literatura já fez, em algum momento, sua lista de preferências. Ainda que seja só para uso pessoal. Os romances que mais aprecia... Seus contos preferidos... Os poemas aos quais retorna com freqüência... Aquelas peças cujo texto, de tão fluente e profundo, prescinde da apresentação no palco...
Pois bem, um dos meus contos prediletos da literatura brasileira, um daqueles que estou sempre relendo com meus alunos, em matérias regulares ou oficinas de leitura, é Felicidade, de Marques Rebelo. Um conto cujo mérito não reside apenas na história, mas em como ela se desenvolve, na estrutura de vaivém no tempo, nos cortes bruscos, em sua linguagem ao mesmo tempo poética e objetiva, em seu diálogo com a funcionalidade do cinema.
Além disso, é um relato cheio de humor e ironia, e que reflete as mudanças por que passava o Brasil, mais precisamente o Rio de Janeiro, da década de 1930: a expansão da mulher no mercado de trabalho, o influência do cinema no comportamento das pessoas, os resíduos de uma sociedade que acreditava que para uma mulher só restava o casamento como substrato de realização e felicidade pessoal.
Clarete, a protagonista, vai tanto ao cinema, que já possui um olhar cinemático. E caminha como as atrizes, percutindo os saltos, numa afetação de fazer voltar cabeças. E faz pose até para pegar bonde, pela manhã, a caminho do “trampo”. Além disso, gasta todo o seu salário ganho na companhia telefônica com roupas e maquiagem, e despreza com desdém os garotos de sua rua, sem, no entanto, deixar de ter seus momentos de fraqueza e dor, à noite, na solidão do seu quarto...
Assim, é em Clarete que penso quando, andando pelas ruas, me deparo com certas figuras. Se no tempo de Clarete havia o cinema como espelho para o comportamento, a aparência e as atitudes, há atualmente o cinema, a tevê, as inúmeras revistas e jornais recheados de fotos de modelos forjados para a vida, a internet e, sobretudo, o mundo da moda... Jamais vi tanta gente andando na rua como se estivesse numa passarela da moda, num desfile. O corpo em viva afetação. Os gestos e passos quase milimetricamente medidos. O olhar distante e vazio, a refletir descaso e indiferença. As roupas nem são assim tão chamativas, mas, inseridas num gosto exótico de momento, destacam o usuário ou revelam muito do seu caráter de papel.
Até o cinema vem reproduzindo esse ar de pose. Vários filmes, hoje, apresentam personagens femininas que reproduzem, linha por linha, não somente a magreza das modelos, mas também sua postura e bamboleio no ato do desfile, naquele momento em que a roupa representa tanto a alma exterior quanto a interior, como pretendia Machado de Assis num dos seus melhores contos, O espelho. Também a série de tevê Invasion, num certo momento crucial da trama, deixa que o vilão (até então quase incógnito) caminhe longamente, a mostrar-se em atitude de auto-exaltação, de exteriorização de um ego apaixonado por si mesmo, inflado, convencido, petulante, assoberbado: em câmara lenta, ele surge, se exibe, seduz e vai embora. Um ou dois minutos de auto-aprovação e afirmação para o mundo.
Ontem mesmo, pela manhã, nos mais ou menos 500m que perfaço de casa até o trabalho, avistei quatro ou cinco pessoas (e não somente mulheres, como alguns leitores poderiam supor) que se colocavam na realidade assim: cientes de que, bem ou mal, se exibiam para uma platéia. A cada olhar que surpreendiam e deixavam para trás, ofereciam seu ar de autodefesa e imolação, como se dissessem: “Gostou de mim, me admirou? Pois bem, agora me esqueça!”
Já não caminhamos: desfilamos. Já não vivemos: representamos.
Será que ainda morremos?

Foto: cena de "desfile", no filme Não conte a ninguém, de Guillaume Canet.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O FLUXO

O sol está se pondo, mas também se colocando
Para uma nova manhã.
Está nascendo e morrendo, se dando e tirando.

Este é o sentido
O rolar do tempo e de tudo.
Mude isso
E não haverá nem mesmo o próximo segundo.

O fluxo. O contínuo e imutável fluxo.

Mesmo as surpresas não são o que parecem.
São somente tese. Que segue.

E não há antítese. Não.
Dizer não é ter dito sim.
Síntese.

Poema incluso em Os prazeres e os crimes, inédito.
Foto: Pacatatu.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

LIMPO

Jamais havia se drogado, o que não o impediu, uma noite, de sair para jogar futebol de salão deixando os tênis em casa...

Miniconto de Nem mesmo os passarinhos tristes, inédito.
Pintura: Pelada de futebol, de Nerival Rodrigues.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

LUTADORES & PERDEDORES

A grande assertiva do filme O lutador, de Darren Aronofsky, é a de que só existe uma luta e, conseqüentemente, um único adversário: a vida.
Mickey Rourke é Randy Robinson, o Carneiro, lutador de luta livre, aquela modalidade de esporte que visa mais ao espetáculo (através de combates simulados e cheios de presepadas) que à verdadeira competição. No Brasil, ficou muito conhecida, nos anos 1960, como telequete e consagrou seu príncipe: Ted Boy Marino, ex-integrante do grupo Os trapalhões.
Depois de um terrível combate (cuja simulação é das mais esdrúxulas, repleta de sangue, vidro e metal), Randy tem um infarto. Recuperado, mas assombrado com a recomendação médica de que não pode mais lutar profissionalmente, o Carneiro decide se aposentar.
É então que ele descobre que o seu maior adversário “não pode ser medido nem pesado”: vai combater com a filha lésbica que já não o considera seu pai; vai ser proibido de ter uma existência normal com Pam, porque esta, em sua condição de stripper, não pode se relacionar com os clientes; vai descobrir que há mais golpes a receber por trás do balcão de frios de um supermercado do que no ringue...
Seco, duro, realista, melancólico e reflexivo, O lutador desloca para o cinema − e para um contexto específico de truculência − uma idéia que há muitas décadas é explorada pelos ficcionistas norte-americanos e seus epígonos: Ernest Hemingway, Charles Bukowski e o francês Jean-Claude Izzo, em algum momento de sua arte, empregam essa idéia de que a vida é o adversário a levar à lona, mas é ela que, em geral, nos nocauteia.
Não é esse senão o assunto do conto Kid Foguete no matadouro, de Bukowski. A vida é uma luta, e ela começa no “pátio de recreio das escolas americanas”; se o sujeito começou perdendo ali, será um perdedor por toda a sua medíocre existência: “na América a gente tem que ser vitorioso, não há escapatória, e é preciso aprender a lutar por ninharias, sem discutir”.
Hemingway desenvolve a idéia do pugilismo como metáfora da condição humana, e o pior dos socos é o de um lutador canhoto. No entanto, o “maior pugilista canhoto de que já se teve notícia é mesmo a vida”...
Izzo, com um olhar em Hemingway e outro na predileção francesa por uma literatura de idéias, afirma: “A vida não era nada além de uma sucessão de rounds”. Dar socos e aprender a levar socos, agüentá-los.
Pois o lutador Randy Robinson, o Carneiro, aprendeu que os golpes da vida são mais certeiros.


Foto: Mickey Rourke em cena de O lutador , de Darren Aronofsky.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

SEVERINO, NARRADOR DA MORTE E DA VIDA

Personagem secundário de Morte e vida Severina, auto de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), publicado em1956. Severino é apenas uma espécie de corpo condutor da narrativa, que constitui um conto natalino; o retirante tentado pela morte e que, por fim, cumprida a sua educação macabra, decide permanecer vivo.
Na verdade, as personagens principais deste poema dramático são a morte e a vida: aquela tentando se sobrepor a esta pela insistência, pela freqüência que institui uma regra (“é sempre nosso serviço/ crescendo mais cada dia;/ morre gente que nem vivia”), e a segunda anulando aquela com um único nascimento, de um menino, similar ribeirinho de Jesus Cristo, capaz de trazer alento e esperança ao mundo sombrio que o rodeia e que, doravante, será a sua casa: “Belo como a última onda/ que o fim do mar sempre adia”.
Desde o primeiro trecho da viagem simbólica que empreende rumo ao litoral de Pernambuco, Severino depara-se com a morte: em funerais, velórios, no discurso de uma carpideira e, enfim, em pleno terreno da nova terra prometida, no diálogo infernal entre dois coveiros. Assim, ao encerrar sua jornada, só pensa em saltar “fora da ponte e da vida”, pois vê seus sonhos frustrados pelo peso da realidade e sua invencível aliada, a indesejada das gentes: “sempre há uma bala voando/ desocupada”.
Todavia, acontece o milagre, a vida renasce, “com sua presença viva”, mesmo quando é “explosão/ de uma vida severina”. Neste ato sempre restaurador – embora tão velho quando o mundo –, o parto, Severino, que perdera a esperança no caminho, recebe-a de volta para perpetrar uma nova viagem, no tempo agora. Ele também renasce. Aquele espaço é seu novo mundo e só lhe resta viver, fazer dele o que seus braços comportam. A provação que sofreu não foi capaz de vencê-lo. Ele a suportou como pôde e, mesmo quando pareceu desistir – ele não sabia –, apenas chegava ao paroxismo da tentação que lhe foi imposta, e da qual, fortalecido, renasceu para a vida. Foi como se Deus o guiasse, em desafio, da escuridão máxima à luz extrema.
Como Sísifo, ele sofreu o peso da ascensão ao cume sufocante e depois revigorou-se num alívio quase impessoal, ao tomar consciência de sua condição de ente que caminha para a morte, e ao adquirir a compreensão necessária de que, mesmo assim, é bom estar na vida, é preciso lutar por ela e tentar ser feliz, quaisquer que sejam as circunstâncias. Nenhuma vida, por mais vil que seja, deverá ser descartada. Sua provação não era senão um aprendizado in vivo, que lhe permitiu salvaguardar o bem mais precioso que pode existir: a vida.


Perfil publicado originalmente na revista Entrelivros, #20.
Pintura: Criança morta (1944), de Cândido Portinari.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

CAPITÃO VITORINO, VOZ DOS HUMILHADOS

Considerado por muitos uma espécie de Quixote sertanejo, aprisionado a um mundo de ilusões, o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha – personagem do romance Fogo morto, de José Lins do Rego (1901-1957), publicado em 1943 – vai muito além deste contorno simplista, pois sua luta em favor dos humilhados e ofendidos, ainda que insensata e meio burlesca, está longe de ser um sonho, um simples devaneio: é o resultado da realidade brutal que o rodeia e uma necessidade premente, da qual ele se ocupa sem vergonha.
No lombo de sua burra, o Capitão Vitorino sai pelos engenhos de açúcar a insurgir-se contra a prepotência dos senhores rurais, a ousadia da polícia e a crueldade dos cangaceiros. À sua volta, porém, depara-se com a ignorância, a penúria, a fleuma e a incompreensão, quando não com a zombaria, da molecada maltrapilha e esfomeada, que segue às suas costas gritando sem piedade: “Papa-Rabo! Papa-Rabo!” Seu método firma-se numa ironia estóica e na oportuna consciência de que na vida, e em especial nas regiões inóspitas como o sertão nordestino, tudo se transforma para um fim irremediável. Antes de mais nada, importa conquistar a liberdade de agir e falar, conforme o que é justo e melhor para o homem. Mesmo que não se alcance nenhum efeito decisivo, houve por certo um ganho em grandeza humana.
Sua natureza reflexiva lhe permite, a um só tempo, aprovar a ação do cangaceiro Antônio Silvino, que distribui aos pobres o produto do seu saque durante a escaramuça à casa do prefeito, e condenar a forma como ele trata a velha D. Inês, mulher do mesmo prefeito, e que, por ser mulher e esposa, deve ser respeitada, poupada ao terror e à violência. Neste caso, ele exige do facínora um nível de respeitabilidade e moral que o ultrapassa...
Com o Capitão Vitorino, que é o personagem central da terceira parte do romance, fecha-se no livro o ciclo mítico dos engenhos, que vai da fartura ao fogo morto. Contrapõe-se, assim, à individualidade angustiada do Mestre José Amaro, cuja filha enlouquece, é abandonado pela esposa e não sabe o que fazer de si mesmo, e ao despotismo do senhor de engenho Seu Lula de Holanda, incapaz de gerir com eficiência as suas terras. Tais personagens formam, respectivamente, o núcleo dos dois primeiros blocos da narrativa.
É de sua boca ferina e consciente, aliás, que sai a pergunta emblemática que mede o grau de transformação por que passaram na época as regiões cuja economia dependia dos engenhos de cana de açúcar, que um a um vão sendo suplantados pelo progresso, representado pelas usinas, e pelo tempo implacável, a deteriorar tudo e todos: “– E o Santa Fé quando bota, Passarinho? – Capitão, não bota mais, está de fogo morto”.


Perfil publicado originalmente na revista Entrelivros, #20.
Imagem: edição popular do romance, pela coleção Grandes Sucessos, 1983.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

A REDOMA BUROCRÁTICA DO BELMIRO

Belmiro é o personagem-narrador do romance de inspiração machadiana O amanuense Belmiro, escrito pelo mineiro Cyro dos Anjos (1906-1994) e publicado em 1937. A trama descreve a vida burocrática de um amanuense, que periodicamente anota, num diário pessoal, os acontecimentos de seu cotidiano pacato e sonhador, dividido entre o presente introspectivo e o passado lírico.
Escrever para ele é evadir, e também um modo de compreensão de si mesmo e do mundo. Confinado a uma vida de prazeres superficiais, de repetição e inércia, de camaradagem compensatória e monótono vaivém dos dias, resta a Belmiro realizar-se em linguagem, análise e humor. Nada escapa à sua pena tensa de ironia e ternura, a sedimentar um equilíbrio que, como homem, ele não alcança.
Incapaz de levar uma vida normal, com relações mais profundas e definitivas, Belmiro chega ao ponto de privar-se de conquistar a mulher que ama e, quando a vê casada com outro homem, numa atitude de contradição doistoiévskiana, leva-lhe incógnito seu último adeus no cais do porto, vendo-a partir – satisfeito – para as núpcias com o marido. Talvez tal ato seja um emblema a encerrar, definitivamente, o Belmiro em sua redoma de burocrata sem ação para a vida, preso a um estoicismo pessoal que é quase um niilismo.
Um personagem e um romance que, como disse Antonio Candido, “insinuam-se lentamente na sensibilidade, até se identificarem com a nossa própria experiência”. Belmiro é toda uma humanidade.


Perfil originalmente publicado na revista Entrelivros, #20.
Capa da sétima edição (1971), pela antiga José Olympio.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

A VIDA EXÍGUA DE MACABÉA

Personagem de A hora da estrela, de Clarice Lispector (1925-1977), romance publicado em 1977, Macabéa é uma jovem nordestina com um sentimento de perdição no rosto. De corpo escasso, opaco, virgem, inócuo e sem enfeites, anda leve para não ser esvoaçada. Moradora de um quarto sórdido na rua do Acre, com mais quatro companheiras em iguais condições e facilmente substituíveis e que trabalham todos os dias até a estafa.
Aos dezenove anos, numa cidade toda feita contra ela, o Rio de Janeiro, tem um emprego banal de datilógrafa. Ignorante, com somente o terceiro ano primário, copia letra por letra para não errar, mas freqüentemente escreve “desiguinar” em lugar de “designar”. Tola, solitária e teleguiada por si mesma, ri para as pessoas nas ruas, sem obter qualquer resposta. Mas não se importa, não passa mesmo de café frio, por que olhariam para ela? Não passa de capim, sem floração. Tem o hábito de grudar nas pessoas, como melaço ou lama. Jamais se viu nua, de vergonha de si mesma, por ser feia ou sem importância. Habita um limbo pessoal, todo seu, sem pior nem melhor, apenas respirando: um viver exíguo.
Nas noites de frio dá a volta em si própria, fatigada, a boca aberta, nariz entupido, um rosto jovem e já com ferrugem. De dia, usa saia e blusa, de noite dorme de combinação. Desperta, é doce e obediente, com seus olhos enormes, redondos, saltados e interrogativos; olhar de asa ferida: “sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola”, define-se. Quando foi demitida por cometer muitos erros de ortografia e sujar o papel, teve a cerimônia de dizer: “Me desculpe o aborrecimento”. Então causou pena e admiração ao chefe e foi poupada... Não evoca nenhum Deus, para não receber um não na cara! Vê a existência como uma coisa que é assim porque é assim: sua melhor resposta. Só quer viver, sem motivo nem indagação. Na verdade, ela é o que é, assim como um cachorro é um cachorro, sem o saber: “já que sou, o jeito é ser”, justifica-se. Raquítica do sertão de Alagoas, sem vocação, sonhos, estudo nem sensualidade, sua única paixão é: goiabada com queijo.

Alimenta o fantasma suave e terrificante de uma infância sem bola nem boneca, e uma saudade do que poderia ter sido e não foi. Só se tornará brilhante, uma estrela, na hora da morte: seu único momento de glória. Sabe que basta apertar um botão para a vida acender, mas que botão? Prefere então não gastá-la, vivendo de menos, poupando-a. No cais do porto, aos domingos (dia em que acorda mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada), ao ouvir o apito prolongado de um navio, sente o coração apertar sem motivo. Como o cantar do galo na aurora de sangue, isso confere um sentido de frescor à sua vida murcha. O cúmulo de sua condição ocorre quando antes de dormir sente fome. Pensa então numa coxa de vaca, mas o que come de fato é papel picado, bem mastigadinho. Noutras noites, se contenta em rolar garganta abaixo um gole de café frio. Seu único luxo é ir uma vez por semana ao cinema. E seu único canal de conhecimento, a Rádio Relógio, simulacro para ela de nossa repetitiva tevê diária: “você sabia que Carlos Magno na sua terra era chamado Carolus?”
Assim é Macabéa. A criação máxima de Clarice Lispector, que, como nenhum outro autor até então, pintou sem piedade (mas com ternura) o ser nordestino de condição irremediavelmente nordestina que chega aos grandes centros urbanos do Sudeste para ganhar a vida e não consegue senão perdê-la, pouco a pouco ou de um sopro, brilhando por um instante no derradeiro momento da morte.
A matriz ou inspiração de Macabéa talvez seja La dentellière, de Pascal Lainé, que Clarice traduziu para a Imago em 1975, com o título A rendeira. Talvez nessa obscura novelinha francesa ela tenha fundado as bases de sua criação, o que não deixa de ser um paradoxo curioso: para ver de perto seu povo e cunhar sua personagem, fora preciso contemplá-los de longe, mediante outro filtro, outra atmosfera, outro idioma. A similar francesa de Macabéa não é muito diferente desta e está no mundo como que soprada, um cisco, um incômodo. E tem igualmente seu destino decretado por um carro, símbolo de uma modernidade que invalida a ambas. Dois mundos, dois destinos, uma só condição: continuar a viver, apesar da vida e dos homens. Cumprir a “grandeza de cada um”.


Perfil originalmente publicado na revista Entrelivros, #20.
Foto: cartaz de A hora da estrela (1985), de Suzana Amaral.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

PORQUE A POESIA É UM BEM SOLITÁRIO

Espera... Espera...
Hoje ainda
E sempre...

Até que nos sobre
Somente a vida
De sempre...
De Os prazeres e os crimes.
Foto: Nathy Silva.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

FIM DE TARDE

Lá fora, dois pombos se coçam, e um ao outro, no telhado. Enquanto eu, daqui de dentro do aquário, sou todo trabalho...

De Os prazeres e os crimes.
Foto: MiciAngora.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

O FIM

Nos últimos minutos de seu cachorro nesta vida, o homem se perguntou, baixinho, numa expressão de contrição e ternura, se o animal sabia que estava morrendo...
– Não, você não sabe... – concluiu depois de um instante.
– Agora sei – disse o cachorro.
E foi o fim.


Miniconto incluso em Nem mesmo os passarinhos tristes, inédito.
Foto: Nathy Silva.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

OUTRO DESTINO

Ontem, um amigo escritor confessou que uma de suas maiores frustrações foi não ter se tornado desenhista ou pintor. Disse isso naturalmente, sem mágoa, enquanto assistíamos à adaptação de O velho e o mar para um belíssimo curta-metragem de animação. Também tenho lá minhas frustrações dessa natureza, e não somente em relação ao desenho e à pintura. Estimo em demasia os músicos, sobretudo aqueles que dominam seu instrumento ao ponto de parecerem uma extensão do mesmo: a violonista espanhola Anabel Montesinos, Astor Piazzolla, Nelson Freire, o sideral Earl Hines... Certa vez li que Hemingway preferia ter se tornado músico de jazz, desejo partilhado por Orson Welles. E há escritores que confessaram grande decepção por não ter seguido a carreira de jogador de futebol ou a de ator. Por sua vez, há atores que declararam ter nascido para outro destino, como James Dean: “Representar é ótimo, e a satisfação é imediata; mas sinto que meu talento é mais para dirigir e, além disso, meu grande medo é escrever. Escrever é Deus. Mas ainda não estou pronto para esse ofício. Sou muito jovem e tolo. Para escrever é preciso ter certa idade; mas sei que quando começar... algum dia...” Infelizmente ele não teve tempo para “ter certa idade”, para aquele “algum dia” projetado e que lhe traria, quem sabe, muito mais satisfação, pois morreu com apenas 25 anos. Prova talvez de que é a vida que nos conduz.

Imagem: cartaz de Vidas amargas (1954), de Elia Kazan, baseado no romance A leste do Éden, de John Steinbeck.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

OCORRÊNCIA POLICIAL

“Não, não peço que gostem do que eu escrevo. Não peço sequer que me leiam...” Assim começava o longo poema que o poeta reescrevia, quando, com uma tijolada, cobriram-no com um pano...

Miniconto incluso em Nem mesmo os passarinhos tristes, inédito. Imagem: cartaz do filme Morte no funeral (2007), de Frank Oz.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

SÁBADO DE GLÓRIA

Victor Vhil foi passear na praia.
A caminho da Barra, na altura da Graça, foi abordado por um menino, que lhe perguntou as horas. Mas Victor Vhil, distraído, pensou que o menino lhe pedia dinheiro e respondeu que não tinha, no momento, nenhum trocado.
A mãe, que acompanhava o filho à distância, se aborreceu e resmungou uma ofensa qualquer, à qual Victor Vhil retrucou assim:
“Vá à merda!”
Pouco depois e já quase na Barra, ele foi abordado por uma mulher – negra – com uma criança no colo. Queria dinheiro.
“Não tenho”, ele disse, sem paciência.
“Obrigado. E vá com Deus!”, retrucou a mulher.
“Prefiro ir à merda.”


Miniconto incluso em Nem mesmo os passarinhos tristes, inédito.
Foto: Farol de Barra, Salvador, BA.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

SOLARIS E EMÍLIO MOURA

Relembremos o romance Solaris, de Stanislaw Lem, e que por duas vezes foi levado à tela, em 1971 por Andrei Tarkóvski, e em 2002 por Steven Soderbergh:
Kelvin é chamado à estação espacial que orbita o planeta Solaris, porque estranhos eventos assombram a tripulação. O planeta possui dois atributos bizarros: modifica-se constantemente, a desenhar-se sempre de outra forma e nas mais variadas combinações de cores; e permite a materialização dos sonhos e das vontades das pessoas que estão próximas a ele – na estação espacial, por exemplo. É assim que Kelvin, depois de algumas horas de sono pesado, desperta ao lado de sua esposa Rheya, morta havia muito tempo. Ao fascínio inicial pelo retorno da amada se segue o horror, e ele se desfaz de Rheya lançando-a dentro de uma cápsula no espaço vazio. Mas logo ela retorna, através de novas réplicas, e Kelvin acaba por aceitá-la. Daí por diante, ele se dividirá entre buscar uma solução para o “problema” – que não é apenas seu, mas de toda a tripulação, com seus sonhos, desejos e medos materializados a cada nova jornada de descanso – ou simplesmente se resignar e levar adiante seus sentimentos pela esposa, que ele jamais esqueceu nem tampouco deixou de amar.
Quando meses atrás li um poema de Emílio Moura, poeta mineiro, o dilema do personagem de Solaris me ocorreu prontamente, como se eu estivesse diante de um texto inspirado pelo romance. Mas era apenas uma coincidência. O argumento de Lem é fantástico (a science fiction é um tronco da literatura fantástica); e o tom do poema, metafísico, embora ambos possam ser considerados um exame ontológico, um estudo do ser. Observem como o poema de Emílio Moura – de quem Carlos Drummond de Andrade dizia ter sido um poeta que “quase” se impôs exclusivamente pela qualidade de sua obra – parece o desabafo subjetivo de Kelvin, protagonista do romance de Lem:


É PRECISO

Agora, que te encontrei, é como se eu já te houvesse perdido.
É preciso voltar e procurar de novo o que não encontrei nunca;
é preciso voltar e gritar bem alto que tu não existes,
gritar bem alto que não te vejo, nem te compreendo,
gritar bem alto que não sou teu.

Sim, é preciso que eu me convença
de que, mesmo quando te encontrei – forma efêmera,
sonho ou reflexo de outro sonho –, tu já não existias,
e de que eu serei forte e frio como aquele que não quer viver,
para te matar em mim, caso tu ressuscites.


(Emílio Moura. Antologia poética. Leitura/MEC, 1971)

Penso que depois de mais de 30 anos de leitura diária, é inevitável que, lendo o que quer que seja, tenhamos um olhar no texto e outro nas referências absorvidas. Foi este o caso que aqui comentei: a coincidência de Solaris com Emílio Moura.

Cartaz: Solaris (2002), de Steven Soderbergh.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

POR QUE LER LITERATURA

Começamos a ler literatura por obrigação: porque o professor nos empurrou em algum momento a leitura de O cortiço ou de O ateneu, talvez de Dom Casmurro. Depois, se os lemos corretamente e sentimos que nossa sensibilidade se apurou, passamos a ler por hábito: já “não conseguimos não estar lendo alguma coisa”, sentimos falta de um romance, de estar com os personagens, envolvidos com seus dramas e suas aventuras; ou da música das palavras nos poemas, daquilo que estes nos dizem e "é como se estivesse brotando de nós mesmos..." Por fim, lemos por gosto (e não seria demais dizer “gosto pessoal”): o autor que nos agrada, o livro que nos agrada, o gênero que mais admiramos, o assunto que nos inspira, a forma estética que nos desperta ao mesmo tempo para o sonho e para a consciência. Neste sentido, diríamos que a leitura de literatura cumpre algumas funções ou objetivos, que são:
1. Faz do próprio ato de leitura uma ação que proporciona, a um só tempo, prazer e proveito, satisfação pessoal e conhecimento do mundo.
2. Desenvolve o senso crítico, a capacidade de refletirmos sobre as muitas realidades que formam a Realidade, pois literatura é ponto de vista, individualidade, deslocamento.
3. Estimula a interação do homem com o seu meio, transformando-se e transformando-o. A literatura transforma o homem, e este, a realidade.
4. Propicia ao sujeito perceber que as palavras não se combinam apenas funcionalmente, para “dizer bem”, com exatidão. Que elas se combinam também para o mistério, o sabor, o delírio, o inesperado, o estranho. E é por isso que se diz que a literatura “desvela” o mundo, mostra-nos sua verdadeira face.
5. Desperta no leitor a compreensão de que ao ler um poema, um conto, um romance, uma peça teatral ele está lendo sobre si mesmo e a si mesmo.


Foto: pichação anônima na Universidade Estadual da Bahia, em 2007: "O mundo poderia existir muito bem sem a literatura, e inclusive melhor sem o homem".

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

ESTILIZAÇÕES

Os escritores − muito mais que outros artistas − são sempre indivíduos inconformados com o que fazem ou com o que os demais escritores fazem e como o fazem, não importa o gênero de sua preferência nem o contexto em que estejam inseridos. Alguns acreditam nas regras e as seguem com rigor de relojoeiro. Outros, aferrados ao extremo oposto, subvertem-nas sem nenhum critério se não o acaso, a música das palavras, a vontade desta voz primordial que rege os sonhos. Ora, lutar aleatoriamente contra um estilo literariamente bonito e correto ou praticá-lo sem concessões de nenhuma natureza é, ainda assim, ocupar-se de buscar um estilo − uma espécie de marca, pessoal ou coletiva. Na arte, como na vida, só há desprezo no silêncio, na indiferença. Quer ser contra? Não escreva.

Fotos: representação de uma aula de literatura, no filme Garotos incríveis (2000), de Curtis Hanson.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

POR QUE ESCREVO

Antes eu escrevia por necessidade de expressão e, de certa forma, para organizar o mundo à minha volta, compreendê-lo. Essa é uma utopia de muitos escritores: Moravia, Faulkner, Graciliano, Drummond. Hoje, escrevo por diversão, gozo pessoal e, talvez, vaidade. Como só escrevo o que quero, sem pressão alguma de ninguém, não vou adiante se o texto não me fornece prazer, ainda que seja uma simples crônica ou mesmo um ensaio. Quanto à poesia, é outra história: ainda escrevo poesia (e acho que sempre escreverei) impelido por uma inquietação, um abalo, algo que está temporariamente dentro de mim e teima em sair, e só o faz mediante palavras, textura sonora, metáforas, ironia. Não é por acaso que se diz que só a poesia confere sentido ao homem e à vida. Ao projetarmos um novo eu a cada poema (o eu do poema não é o do poeta, fique claro isso), nos ampliamos como homens e, assim, nos justificamos perante nós mesmos, embora para nada, já que vamos morrer. Em suma, também escrevo, talvez inconscientemente, para amenizar o fato de que estou no mundo só de passagem. Neste caso, cada texto seria potencialmente uma pegada, um vestígio de nós entregue, por algum tempo, à indiferença do mundo.

Quadro: Auto-retrato (1912), de Egon Schiele.