"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

domingo, 28 de junho de 2009

PERSONAGENS

Nem sempre conseguimos, racionalmente, afirmar de onde veio um personagem, como ele nasceu, criou vida, carne, um fundo psicológico, sentimentos, emoções. E ainda mais um personagem forte, vivo, profundo, que qualquer leitor, porque fascinado – esquecido de que em literatura nada é real, tudo é ficção, mesmo a História –, jura que existiu e que até o tocou, apertou sua mão, um dia, em tal situação, tal lugar – episódio para o qual é capaz de encontrar testemunhas as mais fiéis, dispostas a rogar de joelhos que o fato é verdade. Às vezes, para o grande escritor é melhor lançar mão da metáfora e encerrar o assunto, como fez William Faulkner, segundo testemunho de Irving Howe: “A única vez em que encontrei William Faulkner, perguntei-lhe como ele havia criado o truculento personagem negro Lucas Beauchamp. ‘Eu o vi’, respondeu Faulkner, ‘andando por cima de minha máquina de escrever’”. Beauchamp é o protagonista de Intruder in the dust, traduzido no Brasil com o título O intruso (São Paulo: Siciliano, 1995). Quanto à citação de Howe, está em Madame Bovary, c’est moi!, de André Bernard, um excelente e bem-humorado livro sobre a origem de vários personagens da literatura estadunidense e européia.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

VÁ E VEJA, 3

1) Oi, Mayrant, como te escrevi anteriormente, belíssimo filme! Amei Um dia muito especial. O diálogo com Encontros e Desencontros é nítido. Enquanto todos estão preocupados com o encontro de Hitler e Mussolini, Antonieta e Gabriele (deslocados daquele episódio) se encontram e descobrem que, para além de suas rotinas, vivem angústias em comum. Ele, intelectual, homossexual, desempregado e solitário. Ela, mãe de seis filhos, casada e, apesar disso, também solitária. A cena em que ela bebe o resto do café do marido e dos filhos, porque está cansada demais para preparar seu próprio café, foi, para mim, muito forte. Mostra bem a atmosfera da vida que ela vivia. E a cena em que ele implora para que conversem com ele ao telefone foi igualmente tocante. Mas, a partir do momento em que se conhecem, eles descobrem que existe uma outra opção. Ela, por exemplo, percebe que seu mundo pode ser maior do que a sua cozinha. Apesar disso, Gabriele não muda sua opção sexual, tampouco Antonieta muda a sua vida. Assim como em Encontros e Desencontros, estavam inconformados com a vida que levavam, porém estagnados, presos a ela. Tiveram um relacionamento físico, mas isso não mudou a opção de Gabriele, nem fez com que Antonieta tomasse uma decisão mais definitiva. Viveram um dia muito especial e voltaram ao que eram, voltaram às suas realidades, às suas rotinas. Como o pássaro que, de certa forma, os aproximou (que gozou momentos de liberdade e voltou para a sua gaiola), assim aconteceu com Gabriele e Antonieta. No entanto, percebemos que, se não houve uma mudança objetiva na vida deles, por outro lado não continuaram os mesmos. Quando Antonieta está jantando com o marido e os filhos, ela não é mais a mesma pessoa daquela manhã. O filho comenta sobre as fotos dos jornais, que ela recorta para montar um álbum, mas notamos que essa atividade para ela não terá mais a mesma valia. Algo mudou. Assim como algo mudou em mim. Não saí a mesma ao terminar de assistir este filme. Um filme delicado, sensível, tocante mesmo. Fiquei curiosa em assistir outros filmes de Ettore Scola. Aprecio muito os filmes italianos. Obrigada por este presente, Mayrant. Grande abraço, Lidi.

2) Oi, Lidiane, acabei de ler seu comentário a Um dia muito especial. Você demonstra o quanto gostou do filme, e o quanto ele a "abalou". É, de fato, um filme excepcional. Um filme para assistirmos sempre. Uma aula de cinema. De vida. Um acúmulo de sentimentos estranhos, humanos e ilusórios. Com um detalhe: os dois personagens, solitários naquele conjunto residencial vazio como no fim do mundo, acompanhados de uma única ave, são como o último casal sobre a Terra... E a ave os une como que para a procriação de um novo mundo, mais justo, sensível e sem preconceitos, sem guerra, sem violência. Um símbolo, uma utopia, claro, já que eles vão continuar o que são, embora, paradoxalmente, transformados. Era isso, abraço, M.

sábado, 20 de junho de 2009

POEMA

NÃO BRINQUEI COM MEU CÃO

Estive cansado ontem quase todo o dia.

O corre-corre foi intenso mesmo quando estive parado.
Não pude apreciar livros nas livrarias, nem pensei em olhar
                                             [a programação de cinema.
Não brinquei com meu cão, mal beijei minha esposa.
Tomei café sem atentar para seu gosto, seu calor.
Li duas ou três páginas de Scliar sem a devida atenção.
Não procurei estrelas no céu,
Não pensei em ninguém, em nenhum amigo ou parente,
Não pensei nem em mim mesmo.
Passei o dia ignorando existências, dores, sentimentos, artes, combates.
Passei o dia com homens e mulheres sem que eu soubesse, nem eles,
Que o amor é provável, e que a amizade é possível,
E mesmo um acordo entre inimigos...
Passei o dia rabiscando e apagando, com o corpo,
O tempo e o espaço à minha volta
E tentando me convencer de que estou certo, todos estamos certos,
Que este é o trilho, e que vamos por ele para o único destino conhecido.
Sim, vamos, e é isso que implica em vazio:
O deste sábado, o de ontem e o de amanhã, que é domingo.
Que alguém nos salve disso a que chamam de... Não, não vou dizer!
Seria nomear o inominável.
Prefiro que o leitor preencha o que chamo de− com as palavras de sua
                                                                 [própria experiência.
Afinal, por que outro motivo leríamos poesia?
Por que outro motivo nos daríamos a chance de brincar de roda
                                                                 [entre as palavras,
De cegos entre metáforas?
MAYRANT GALLO. De Nem mesmo os passarinhos tristes, inédito.
Foto: autoria de Dulciene Anjos.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

RECEIO DO OUTRO

1
Certa vez perguntei a um especialista em filmes de bangue-bangue sobre um filme a que eu tinha assistido na infância e do qual gostara muito: Céu amarelo. Sem hesitar, o sujeito me garantiu que o filme não existia:
“Conheço todos os filmes de faroeste e nunca ouvi falar desse...”
A resistência veemente do sujeito me obrigou a procurar, por mim mesmo, alguns livros sobre o assunto, nos quais eu pudesse encontrar qualquer referência ao tal filme. Não foi difícil: o primeiro que abri evidenciou que eu estava certo. Céu amarelo não só existia como era considerado um clássico do gênero, dirigido por um de seus mestres incontestáveis: William Wellman.
2
Um episódio inverso, creio, me fez tomar gosto pelo conhecimento e buscá-lo, embora sem desespero: quando adolescente eu lia muito e sempre estava com um livro diferente enfiado entre os cadernos e livros de escola. Então, uma tarde, um garoto de outra turma e que eu só conhecia de vista me viu com um romance de Pasolini.
“Pasolini? O cineasta?”, perguntou, com um indisfarçável tom de admiração.
Naquela época eu não sabia quem era Pasolini e só havia apanhado o livro na biblioteca pública por causa do título, atraído pelo mistério da frase: A hora depois do sonho. No entanto, daí por diante não me deixei mais apanhar ou surpreender. Pasolini logo se tornou para mim um cineasta dos mais freqüentes e instigantes. E foram bem poucas as vezes, desde então, que alguém me falou de algum artista importante sem que eu o conhecesse, ao menos de referência.
3
Examinando superficialmente os dois episódios, me dou conta de que ambos representam modelos de professor. O primeiro é aquele que, do alto do seu conhecimento, desdenha o que não conhece; e o segundo, aquele que, mesmo ciente de que sabe, compreende que pode saber ainda mais, e que o conhecimento nos chega pelas mais estranhas vias: pela ação inconsciente de um neófito, por exemplo. Os dois, no entanto, despertaram em mim a fúria pelo saber, e a eles sou grato, pois, a um só tempo, me tiraram do embotamento e me fizeram ver que não somos senão o receio do outro ou o seu fantasma.


Imagem: cartaz do filme Johnny Guitar (1954), de Nicholas Ray. Um faroeste feminista cultuado por cineastas como Truffaut, Scorsese e Almodóvar. A canção homônima que embala a trama é de Peggy Lee, interpretada por ela mesma, que diz: "Jamais houve um homem como Johnny Guitar".

terça-feira, 16 de junho de 2009

NÃO HESITEM!

Clique em cima da imagem, para ler o texto do convite.
Responda e ganhe um exemplar do livro:
1) O que aconteceu com o ator principal de Vá e veja, de Klimov, depois de terminadas as filmagens?
2) Que romances de Dino Buzzati foram adaptados para o cinema?
3) Que livro de Herberto Sales foi considerado por Guimarães Rosa um dos melhores romances da literatura brasileira?
4) Que romance de José J. Veiga satiriza a Ditadura Militar Brasileira? Em que ano ele foi publicado?
5) Que composição da música erudita é considerada o marco da arte moderna? Quem a compôs?
6) Em que filme Monica Belucci aparece fazendo uma ponta tão pequena, que não mereceu nem crédito?
7) Que escritor famoso faz uma ponta em A noite americana, de Truffaut?

domingo, 14 de junho de 2009

DOIS POEMAS

REMOS

De canoa, vinha visitá-la
Todos os domingos à tarde
E juntos, lado a lado,
Se beijavam.

Eram namorados e um dia seriam casados.
A ilha invejava o idílio.
O idílio envolvia a ilha.

Um dia, depois de anos,
Ele não veio.

Acharam só a canoa vazia.
Sem os remos.


O TEMPO

Onde ontem uma barbearia
Hoje uma lanchonete

Se os tempos são unos e simultâneos
Enquanto se come
Cabelos flutuam

Comem-se sanduíches
E mechas.

MAYRANT GALLO. De OS PRAZERES E OS CRIMES, inédito. A bela foto acima é de autoria da fotógrafa NATHY SILVA.

domingo, 7 de junho de 2009

ESTÉTICA VIOLENTA

Não há explicação quanto ao que nos faz gostar de um poema um conto um romance um filme. Quantas vezes li Felicidade, de Marques Rebelo, bem brasileiro! Quantas vezes a primeira página de Machado, o Casmurro. E mais ainda a frase “que eu conheço de vista e de chapéu”. Quantas vezes Antonioni, Camus, Örkény! Quantas vezes os exercícios de Borges. Exercícios mentais, históricos, de exibição do intelecto para o gozo dos olhos. Quantas vezes, em Tóquio violenta, de Suzuki, esta cena: um carro, bandidos, uma mulher bonita que surge na calçada, um deles que a chama, e ela que se volta – e assim a imagem, num close inesperado e estonteante, revela-nos seus olhos, sua boca e nos antecipa toda a estética do filme, pois a surpresa da moça é a nossa.
Imagem: close de Tóquio violenta (1966), de Seijun Suzuki.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

PORTAL STALKER: DESAFIO

"A Terra é o berço da humanidade, mas não se vive no berço eternamente." (Tsiolkovsky)

Comunicado aos cultores da ficção científica: a revista Portal Stalker já está na plataforma, com previsão de lançamento para o fim do mês de junho. Aguardem. Enquanto isso, prove que você conhece o gênero em questão e responda:

1) Qual o nome do robô do filme clássico O dia em que a Terra parou?
2) Que escritor é considerado o criador da palavra "robot"?
3) Qual o título do conto de Jorge Luis Borges que preconiza a "possibilidade alien"?
4) Que filme clássico da FC é citado em Adeus, Lênin?
5) Quantas versões cinematográficas foram feitas do romance Os invasores de corpos, de Jack Finney? Quais?
6) Que livro da FC é referido por C. G. Jung no apêndice do seu estudo Um mito moderno sobre coisas vistas no céu?

Ao vencedor as batatas! Quero dizer, um exemplar da Portal Stalker. Se houver empate, valerá quem enviou as respostas primeiro.

Integram a Portal Stalker os seguintes autores: Brontops, Ivan Hegenberg, Luiz Brás, Marco Antônio de Araújo Bueno, Maria Helena Bandeira, Mayrant Gallo, Roberto de Sousa Causo, Rodrigo Novaes de Almeida, Sérgio Tavares & Tiago Araújo. O editor e organizador é Nelson de Oliveira.

terça-feira, 2 de junho de 2009

ENCONTRO MARCADO

INSTANTE

Um burro debaixo de uma árvore.
Um menino chorando, outro menino sonhando.
Uma mãe pra cima e pra baixo e um homem na cama.

A terra
O tempo
A vida escorrendo.

OUTONO

Melancólicas,
as árvores fitam suas folhas no chão!

AZUL

O olho azul do gato
mar que anda pela casa.

LÚCIA SANTÓRI-CARNEIRO é poetisa quase bissexta: publicou Peixe (1980) e As voltas do tempo (2008). O autor do comentário mais criativo e sincero posto aqui será premiado com um exemplar de As voltas do tempo, autografado pela autora.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

A PROPÓSITO...

O HOMEM SOLITÁRIO

Ele estava na ilha desde o início do verão. Na casinha da colina instalara-se solitário e sem qualquer esperança de que chegasse alguém. Nas duas pensões próximas e no hotel sobre as pedras, já na curva da ilha, os hóspedes eram os mesmos dos anos anteriores, com algumas caras novas, porém.
Esta tarde ele fora à praia com um livro nas mãos e, debaixo do sombreiro, se pusera a ler. Com a aproximação do carnaval, poucos eram os banhistas, e especialmente naquele momento, meio de tarde, não havia nenhum sequer. Só uma família – dois casais idosos – tomava sol de costas para o mar, como num quadro de Hopper.
O que o desviou de sua leitura foi a grande sombra que passou sobre ele, sobre os dois casais e seguiu para o mar. Quando levantou os olhos, viu que o avião mergulhava de bico na água calma e brilhante da tarde. Toda a ação não lhe consumiu senão quinze segundos de sua vida, e o avião, imerso no mar, já não existia.
“Ei, ei, vocês viram?”, perguntou, correndo em direção aos casais de velhos.
“Não! Não! O quê?”, um deles disse.
“O avião!”
Não, ninguém vira, e ainda mais que o avião mergulhara em silêncio, como se os motores não mais funcionassem, e não fossem, aqueles velhos, tão surdos como montanhas.
“Avião? Não, não vi. Alguém viu?”
À ausência de resposta seguiu-se a reacomodação às espreguiçadeiras e ao sol, ao frescor agradável da tarde que findava e que nada mais poderia ferir.
Restou ao homem, parado à margem das ondas, olhar para o ponto do mar onde o avião desaparecera e imaginar, com horror, o que estaria acontecendo lá embaixo: o pânico dos passageiros, a dor da morte ao fim do último resíduo de oxigênio, o desespero por sair e se salvar...
E se ninguém na ilha parecia ter visto o avião, ele próprio – passado o assombro do primeiro momento – começou a se questionar se de fato o avistara, se o acidente, tão insólito, realmente acontecera. Se ele ao menos soubesse mergulhar...
Mas, à noite, com os pés na água, lá estava ele diante das ondas, incrédulo – sonho de todos os que dormiam à sua volta.


Miniconto que integra Nem mesmo os passarinhos tristes e que teve origem num sonho, em janeiro de 2009. Foto (Globo.com): aeronave similar ao avião da Air France que desapareceu ontem no espaço aéreo entre o Brasil e o Senegal.