"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

MARIO MONICELLI

O cineasta italiano Mario Monicelli morreu nesta segunda-feira, aos 95 anos, depois de fazer o mundo inteiro rir, ainda que fosse com amargor, como em Parente é serpente (2006), a mais terrível história de Natal já filmada, ou com melancolia, como em Os eternos desconhecidos (1958), que retrata as ações de uma pífia e malfadada quadrilha de ladrões. Seus filmes, especialmente os dois citados, mostram as pessoas como elas são: humanas, fracas, vulneráveis e comicamente condenadas ao fracasso. No desfecho de Os eternos desconhecidos, depois que a quadrilha se arruína na tentativa de assaltar uma loja de penhores, um dos bandidos decide se tornar operário: trabalhar o dia inteiro por um salário miserável. Humor e dor. Riso e melancolia. Uma retrospectiva de Monicelli seria fundamental agora, para mostrar a muitos diretores de cinema que o verdadeiro humor não se caracteriza por queda em piscina ou torta na cara, nem, por outro lado, por piadas pseudointeligentes, em pastiches de Woody Allen, que, aliás, faz uma bela homenagem a Monicelli, em Trapaceiros, um de seus filmes mais populares e literalmente inspirado em Os eternos desconhecidos. Monicelli junta-se agora a Fellini, Antonioni, Zurlini, Pasolini e Risi, formando no lado escuro da vida um sexteto irreverente.

sábado, 20 de novembro de 2010

LINDAS CAPAS, 3

Vai longe o tempo em que um livro de literatura se vendia e circulava só pelo seu conteúdo. Claro que isso ainda ocorre, nos casos dos escritores que ou se inscreveram definitivamente na história da literatura, pelo seu valor estético ou de assunto (Kafka, Faulkner, Camus, Buzzati, Bandeira) ou que, além disso, foram incorporados à cultura (Pessoa, Salinger, Neruda, Calvino, Borges). Mas, com a multiplicação do número de autores, uma capa atraente é fundamental, como esta, do volume de poemas de Kátia Borges, uma das mais autênticas vozes da poesia contemporânea na Bahia. É uma capa de observador curioso, de voyeur urbano que em cada janela acesa, de prédios ou de ônibus, vê um mundo. Uma capa que nos coloca dentro de um veículo que passa, de um livro que, seduzidos, logo abrimos, a esmo, para nos depararmos com versos assim:

DESERTO

Eu te asseguro que nunca estive só,
mesmo quando o mundo
inteiro pousou seu peso
sobre o meu ombro. E muito
menos quando o vento
arremessou a vida, como uma
carícia violenta, em meu rosto.

Belo poema, linda capa! Uma combinação perfeita de cores e palavras, que a fotografia da falecida escritora Maria Guimarães Sampaio, com sua lente sensível ao mistério, certamente inspirou. Aliás, a capa é toda esta foto!

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

LIVROS A MANCHEIAS

Entre 29 de novembro e 3 de dezembro, das 8:30 às 17:30, a Editora da Universidade Federal da Bahia promoverá a "Feira de Livros da EDUFBA". O evento já acontece há alguns anos, nas duas livrarias da universidade, nos campi de Ondina e do Canela. Os livros terão descontos de até 50%.

Compareça e antecipe seus presentes de Natal! Seus amigos e parentes vão adorar. Você também!

Livraria 1: R. Augusto Viana, s/n, estacionamento da reitoria, Campus do Canela
Livraria 2: R. Barão de Jeremoabo, s/n, Biblioteca Reitor Macedo Costa, Campus de Ondina

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

LEITURAS, 5: SÉRGIO FARACO

Aos setenta anos, o gaúcho Sérgio Faraco é um dos melhores e mais importantes escritores brasileiros da atualidade. Sua escrita abrange o conto, a crônica, o ensaio e também livros históricos, como o originalíssimo O crepúsculo da arrogância, que narra o naufrágio do Titanic minuto a minuto, desde sua festejada partida do cais na Europa, para a sua fatídica viagem, até seu último suspiro nas águas geladas do Atlântico. No conto, gênero em que Faraco é um mestre indubitável, sua produção, embora vasta, concentra-se primorosamente em quatro livros, que nenhum leitor sério da literatura brasileira pode deixar de conhecer: Contos completos (2004), Dançar tango em Porto Alegre (1998, antologia em formato de bolso que ganhou o Prêmio Nacional de Ficção da Academia Brasileira de Letras, em 1999), Noite de matar um homem: contos de fronteira (segunda edição ampliada, 2008) e Doce paraíso (também em segunda edição ampliada, 2008). Neste último, visando à conquista do leitor jovem, o autor reuniu 18 relatos de iniciação: contos cujos personagens são garotos e garotas em "aventuras" decisivas para a sua formação existencial. As dúvidas comuns à primeira idade, o amor, a sexualidade, os sonhos, os medos, os enigmas familiares, todos esses temas comparecem aos contos em linguagem direta, descarnada de excessos e, ao mesmo tempo, eloquente, em seu ciframento e sua amplitude. Cinco ou seis constituem obras-primas indiscutíveis e que nos remetem imediatamente ao que Anton Tchekov e Machado de Assis de melhor escreveram, nesta difícil e sedutora arte do conto, gênero que pretende dizer o máximo com o mínimo de palavras e inscrever-se na eternidade como uma espécie de esboço de uma obra maior que, no entanto, paradoxalmente, não pode existir senão como esboço. Os contos "Verdes canas de agosto", "Três segredos", "Guerras greco-pérsicas", "Quatro gringos na restinga", "Majestic Hotel" e "Doce paraíso" atingem esse patamar de fruto proibido que não se esgota, de luz afetuosa que não se apaga. Um livro que o leitor iniciante não vai esquecer, e que o experiente sempre irá revisitar.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

LEITURA DE BOLSO, 1: O ESTRANGEIRO

Uma excelente opção de bolso é a recém-lançada edição de O estrangeiro, de Albert Camus, pela coleção Best Bolso, da editora Record. Publicado em 1942, na França, este é o mais célebre romance do escritor franco-argelino e um dos dez melhores romances escritos no Ocidente na primeira metade do século XX, ombreando-se, apesar das poucas mais de 100 páginas, com obras como Ulisses, O som e a fúria, Em busca do tempo perdido, O processo, O castelo, Cem anos de solidão, Grande sertão: veredas, O mestre e Margarida, A náusea, O deserto dos tártaros, Pedro Páramo, Passeio ao farol, A colmeia e alguns poucos outros. O curioso é que, não obstante o tom "existencialista" e sua prosa vazada de poesia, com descrições visuais e sinestésicas, este é um relato que se lê com o mesmo interesse e fervor com que se mergulha num romance policial. Aliás, em certo sentido, O estrangeiro é um romance policial. Camus era um admirador do gênero, e reza a lenda de que ele se inspirou a escrevê-lo depois da leitura de O destino bate à sua porta, de James M. Cain, sem dúvida um clássico que não perde vigor, mesmo depois de mais de 70 anos de sua publicação. Com O estrangeiro não é diferente, basta abrir o livro e se deixar envolver por suas palavras, de sonho e rebeldia: "Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: 'Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames'. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem". Essa dúvida inicial é somente o princípio de uma dúvida maior, que vai fazer do protagonista um joguete do destino. Aproveite o verão que se aproxima e leve para ler na praia. Se o mar carregar seu livro, o prejuízo não será grande e você poderá comprar outro: só R$12,90.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

VÁ E VEJA, 12: IMITAÇÃO DA VIDA

Finalmente disponível em DVD, Imitação da vida (1959), de Douglas Sirk. O assunto deste filme são muitos: família, preconceito, racismo e choque de gerações. Com sua habitual frieza e realismo ao abordar temas fortes, Douglas Sirk mostra o quanto o racismo faz doer e obriga que as pessoas sofram e sejam quem elas não são. Annie é negra e teve uma filha (Sarah Jane) com um branco. A menina despreza a mãe, pois entende, desde cedo, que não pode se permitir ser negra (ou filha de uma negra) num mundo onde "ser de cor" é quase uma ofensa. As duas vão morar na casa de Lora, atriz branca cuja carreira no teatro começa a decolar, e sua filha, Susie. Na estrutura familiar, Anne passa a ocupar os espaços tanto de mãe quanto de empregada doméstica e governanta. Formam então uma família "estranha", sem a figura masculina e com duas mulheres destituídas do olhar comum do preconceito e do racismo. Nem Lora lembra que Anne é negra, nem esta a faz recordar que ambas são, na cor da pele, tão diferentes. Elas são mulheres sem homens e com duas filhas para criar num mundo de competição e intolerância, isto é tudo. Tal condição exige que se ajudem mutuamente, cada uma exercendo a função que a sociedade previamente lhes reservou. E suas filhas, à parte, vão vivendo com se fossem irmãs. Com o passar dos anos, novos problemas, especialmente com Sarah Jane, que tenta a todo custo escapar da mãe, deixar de ser "a filha de uma mulher negra". É então que o espectador sente a dor mais aguda e brutal, a dor do desprezo absoluto, do abandono, da traição, e compreende como a sociedade, com seu sentido gregário e sua propensão à intolerância ao "outro", faz mal ao indivíduo e também à vida. A sequência final, em que negros e brancos dividem um mesmo espaço público, entrou para a história do cinema, por sua metáfora da igualdade entre as pessoas. E poucos chegam aquele ponto sem derramar lágrimas (e não poderia ser diferente, uma vez que o tema musical que emoldura a cena é um lamento de dor, na voz rasgada de Mahalia Jackson). Um filme que, longe de imitar a vida, a reproduz no que ela tem de pior (o preconceito) e de melhor (a esperança).

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

PORTAL FAHRENHEIT

Está chegando a Portal Fahrenheit, a última das revistas de science fiction organizadas pelo Nelson de Oliveira. O lançamento será em dezembro. Ao fazer o balanço de todas as edições, o Nelson assim resumiu o projeto Portal:

6 edições (Solaris, Neuromancer, Stalker, Fundação, 2001 e Fahrenheit)
798 páginas
44 autores
129 contos (50 curtos, de até 3 páginas, e 79 longos)
2.450 exemplares distribuídos

Autores (até duas revistas):
Abilio Godoy
Ana Cristina Rodrigues
Braulio Tavares
Bruno Cobbi
Carlos Emílio C. Lima
Carlos Ribeiro
Claudio Brites
Claudio Parreira
Daniel Fresnot
Danny Marks
Delfin
Fábio Fernandes
Georgette Silen
Geraldo Lima
Giulia Moon
Homero Gomes
Ivan Hegenberg
Izilda Bichara
J. P. Balbino
Jacques Barcia
Laura Fuentes
Leandro Leite Leocadio
Lima Trindade
Luiz Roberto Guedes
Marcelo L. Bighetti
Márcia Olivieri
Martha Argel
Petê Rissatti
Richard Diegues
Roberto Melfra
Sérgio Tavares
Sid Castro

Autores mais frequentes (em três revistas ou mais):
Ataíde Tartari
Brontops Baruq
Luiz Bras
Marco Antônio de Araújo Bueno
Maria Helena Bandeira
Mayrant Gallo
Mustafá Ali Kanso
Ricardo Delfin
Roberto de Sousa Causo
Rodrigo Novaes de Almeida
Rogers Silva
Tiago Araújo

A Portal Fahrenheit será a mais extensa de todas, 160 páginas, com a participação de 21 autores.

domingo, 7 de novembro de 2010

LEITURAS, 4: AU-AU

Au-Au: três contos de cão é o terceiro volume da Coleção 3 Contos, da pequena mas criteriosa editora Dantes, do RJ. Enfeixados junto ao colosso da literatura inglesa Rudyard Kipling, aparecem o carioca João do Rio e o baiano Dias da Costa. Este último, sem dúvida, é o mais esquecido. Nascido em 1907, no Largo da Piedade, aqui pertinho, pois estou nos Barris, Dias da Costa publicou dois volumes de contos: Canção do beco (1939) e Mirante dos Aflitos (1960). Ele comparece ao volume da Dantes com o conto O cachorro Au-Au e outros cachorros, de seu primeiro livro. O conto de João do Rio é Os cães e o de Kipling (o mais sofisticado dos três, repleto de reflexões e sutilezas psicológicas), Garm, um refém. Nos três relatos o cachorro é o centro da narrativa: ou porque sofreu um deslocamento (mudança de dono ou casa) ou porque infesta o ambiente, caso específico do conto de Dias da Costa, cuja trama se desenvolve num beco cheio de cães. Nestes contos, muito ficamos sabendo dos cães, mas igualmente dos homens. Em Kipling, compreendemos que a ausência é um sentimento que pertuba as duas espécies e faz sofrer; no de Dias da Costa, cão e Homem chegam a uma mesma solução para um problema cotidiano, que é o da interferência do "outro", e no de João do Rio, que o amor (ou desejo, como queiram chamar) é universal, comum a todas as espécies. Mais que sobre cães (ou pessoas), estes são relatos sobre a essência do ser vivo, ou da própria vida.

No final do volume, a editora dedica o livro a vários cães famosos, entre os quais Baleia, Pluto, Buck, Lassie e Bidu, mas esquece o Snoopy, talvez o mais célebre de todos.

sábado, 6 de novembro de 2010

LEITURAS, 3: BERNHARD SCHLINK

O limite do mistério familiar ou é a ignorância ou o silêncio. Tal dilema enche de dúvidas e de inadaptação a vida do jovem protagonista da bela novelinha A menina com a lagartixa, de Bernhard Schlink, autor do célebre O leitor (curiosamente este livro, lançado no Brasil pela Nova Fronteira, em cuidadosa edição no final da década de 1990, não teve eco, e seria preciso que a Record o relançasse no vácuo do filme norte-americano, para que o livro pudesse ser apreciado por uma camada maior de leitores, e os demais livros do autor chegassem aqui). Com A menina com a lagartixa não há esta facilidade proporcionada pelo cinema: ou os leitores arriscam, como fiz com a primeira edição de O leitor, que li e indiquei para muitos amigos, apesar de que bem poucos o leram naquela ocasião, ou simplesmente seguem alheios a um excelente texto, que vejo como uma metáfora do próprio mistério da existência. Um garoto passa a infância a admirar um quadro de seu pai: A menina com a lagartixa. Nada lhe é dito a respeito do quadro, que, no entanto, é comprovadamente a única fortuna da família, protegido de tudo e de todos por seu pai. Este morre repentinamente, quando o protagonista, já adulto, está fora, na universidade, e sua mãe se recusa a ficar com o quadro. O rapaz o leva para seu quarto de pensão, como um troféu e um bem familiar, e tudo faz para saber que obra é aquela, quem a pintou e por quê, e em que circunstâncias: o contexto artístico e político que a gerou. Suas pesquisas revelam que na base do quadro está a Segunda Guerra Mundial e, consequentemente, o Nazismo. A ferida. Talvez por isso seu pai se calou. Ou talvez por outra coisa, mais sutil e terrível. Qual o segredo? Límpido, exato, poético e simbólico, este relato é a um só tempo expurgo e alívio. Ao fim, o protagonista como que se descarta de uma camisa suada e veste outra limpa, para o resto de seus dias.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

VÁ E VEJA, 11: UM LUGAR AO SOL

Raros são os filmes que serão revistos, e ainda mais raros aqueles que, aconteça o que acontecer, serão sempre relembrados. Entre aqueles que jamais esqueci está Um lugar ao sol, de George Stevens, recém-lançado no Brasil em DVD. Baseado no romance Uma tragédia americana, de Theodore Dreiser, com duas ou três edições apenas em português, esta produção de 1951 constitui uma obra-prima da arte de narrar através de imagens. Se o assunto do filme já encerra por si só uma atração para o espectador (a ascensão de um jovem pobre na empresa de seu tio milionário, trama que a Globo "plagiou" em sua primeira versão de Selva de Pedra), mais sedutoras são as imagens que articulam, harmoniosamente, seu entrecho. Entre quatro ou cinco sequências magistrais, duas se destacam e tornaram-se para mim, por anos a fio, inesquecíveis.

1) O momento em que George e Angela se conhecem. Ele está sozinho jogando sinuca no palácio de seu tio, pois sente-se deslocado na festa e não conhece quase ninguém. Angela passa diante da porta e o surpreende a fazer uma jogada de efeito, digna de um mestre do bilhar:
"Uau!", ela exclama.
E depois o cumprimenta:
"Olá".
"Olá', ele responde.
"Vejo que desperdiçou sua juventude", ela ironiza com o fato dele ser um jogador exímio.
"Sim", ele concorda, fascinado com a beleza da garota.
"Por que está sozinho? Está sendo exclusivo?", ela brinca, dando volta à mesa, em direção a George.
Ele não diz nada.
"Sendo dramático?"
George continua sem responder, e a admirá-la.
"Sendo triste?", ela atinge o ápice de seu jogo de sedução.
Por fim ele responde:
"Só estou me divertindo. Quer jogar?"
"Não, só vou observar. Continue."
Daí por diante ele jogará com a vida, e ela praticamente só o observará, meio incrédula e extática, até o instante da segunda sequência que considero genial.

2) George está preso, populares querem linchá-lo. A cena corta para a casa de Angela, que está reclinada no sofá, olhando pela janela as árvores do jardim agitadas pela ventania. Sua mãe termina de ler no jornal a notícia sobre o crime de George e o joga na lareira; simbolicamente condena-o. Do fogo a imagem vai para Angela. E ela, o fogo e o vento tornam-se uma coisa só, em ebulição. Angela olha o jornal queimando, e das cinzas a câmera passeia pela sala, que já não é aquela, mas a futura, sem Angela, sem móveis, só jornais espalhados, símbolos da mudança que sua família foi obrigada a promover, por força das circunstâncias. Um sutil corte temporal que decide do lado de quem Angela vai ficar: da vida, em detrimento do amor.

O resto, ou o todo, confiram vocês mesmos, pois este é um dos mais bonitos e bem-feitos filmes de Hollywood. Bons tempos em que o dinheiro ainda era empregado em favor da arte e do bom gosto.