"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

LEITURAS, 11: GUY DE MAUPASSANT

Se o leitor jamais leu Guy de Maupassant, considerado ao lado de Edgar Allan Poe, Anton Tchekhov e Machado de Assis um dos criadores do conto moderno, e quiser de uma assentada ter acesso a um panorama perfeito do que ele escreveu de melhor no âmbito da ficção breve, o livro indicado é Bola de Sebo e outros contos e novelas (Civilização Brasileira, 1970). Com tradução de Lygia Junqueira Fernandes, constam do volume os relatos Bola de Sebo, Pensão Tellier, Miss Harriet, Mademoiselle Fifi, O horla e A herança, todos indiscutivelmente obras-primas da ficção universal. No primeiro texto, Maupassant examina, na figura da prostituta Bola de Sebo, os contextos que favorecem as conveniências sociais: uma simples operação de débito e crédito e cujos maiores objetivos são o bem-estar, o sucesso pessoal e a sobrevivência. Em Pensão Tellier, afirma que os bordéis são necessários e faz Deus entrar na igreja com as prostitutas, como se vivesse entre elas e as perdoasse. Em Mademoiselle Fifi, que é um homem, janota e afetado, o palco é a guerra e seus horrores. Em A herança, talvez o texto mais cáustico da antologia, expõe um caso de gravidez, traição, dinheiro e tribunais, acentuando o caráter frio, calculista e burocrático da vida em sociedade. O horla é simplesmente um dos mais conhecidos contos sobrenaturais do mundo, adaptado para os quadrinhos e, não raras vezes, imitado (ou pelo menos citado) por autores modernos e atuais. Maupassant não quis agradar a ninguém, nem muito menos passar, forçosamente, à história da literatura. Escreveu o que viu, viveu ou imaginou a partir do que viu e viveu, em estilo direto, claro e irônico. Mais de cem contos e novelas e alguns romances formam o seu legado, escrito num período muito curto, de mais ou menos dez anos, até que a loucura o devastasse. Sua obra permanecerá viva e legível, enquanto existir o sol.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

VÁ E VEJA, 16: DIVÃ DO AMOR

Jake Singer é professor de literatura e frequenta um estranho psicanalista argentino, o Dr. Morales. Ao conhecer a bela viúva Allegra Marshall, sua vida ganha um novo sentido e, pouco a pouco, ele escapa da melancolia tchekhoviana em que está imerso. Mas, como a própria vida, as relações, e em especial as amorosas, não são fáceis. Surgem os incidentes, a pressão paterna, as exigências do seu psicanalista e a tensão que qualquer relacionamento impõe. O pessimismo do contista Raymond Carver paira sobre a cabeça dos amantes, e a indiferença camusiana, apesar de coerente com o absurdo da vida, não é a solução. Divã do amor, mal traduzido no Brasil, pois originalmente intitula-se The treatment, é uma grata surpresa, o tipo do filme que começamos a assistir despretensiosamente e, com poucos instantes, estamos arrebatados. Baseado em romance de Daniel Menaker (que assina o roteiro em parceria com o diretor, Dren Rudavsky), e repleto de citações literárias, com leves influências de Woody Allen, e uma ironia que costura todas as falas, Divã do amor seduz e empolga. Não é uma comédia, como anunciado na embalagem do DVD (às vezes me pergunto, assombrado, quais são os critérios dos distribuidores na classificação dos filmes), é um drama, uma história de amor quase "ordinária, como tantas outras, entre um professor de literatura meio inadaptado à vida e uma mulher frágil, marcada pela recente perda do marido. Sutil, delicado, vivo e literário, The treatment nos conduz à cura dos maus filmes, que não são poucos e geralmente sobram em pretensão, pois são menos eloquentes que tagarelas.

domingo, 16 de janeiro de 2011

PERPLEXIDADE

Esta foto, publicada ontem no IG, é para mim o maior símbolo da dor por que passa o Rio de Janeiro. A perplexidade do cão, fiel à sua dona desaparecida sob a terra e uma cruz tosca, ultrapassa todos nós.

VÁ E VEJA, 15: JUVENTUDE

Domingos Oliveira, diretor de uma das obras-primas do cinema brasileiro, Todas as mulheres do mundo, coloca três homens numa enorme casa de campo, em Petrópolis, e, em meio a boa comida, bebida, música, cinema e literatura, discute assuntos como sexo, masculinidade, a vida, o amor, a juventude, a dor de viver e de amar, as mulheres, o dinheiro, as drogas, os sonhos que aos poucos se evaporam e, por fim, a irremediável velhice cuja culminância é a morte. O desfecho reafirma a ideia de que os homens passam, e a vida permanece, diariamente revitalizada pelo nascer do sol.

Um dos momentos mais importantes do filme, e de certa forma simbólico, é aquele em que a jovem empregada da casa se aproxima de um dos personagens, que, recostado numa poltrona, recuperava-se de um "quase-infarto", e, pegando sua mão, começa a rezar: segundos depois ele se levanta, não sabemos se recuperado pela oração ou reagindo, como ateu ou agnóstico convicto, à "interferência divina".

O estilo de Domingos Oliveira é espontâneo, com câmara na mão, improviso e roteiro repleto de ironias e referências à literatura, ao cinema e ao conhecimento humano, desde os gregos. Uma vez que muito do desenvolvimento de seus filmes se dá através da palavra, do diálogo, não é demais afirmar que seus irmãos de estilo são Eric Rohmer e Woody Allen, dos quais ele se aproxima e ao mesmo tempo se distancia. Aliás, quando Domingos Oliveira estreou com Todas as mulheres do mundo (1967), Woody Allen ainda não havia achado sua arte, e Eric Rohmer vivia indeciso entre a Nouvelle Vague (Minha noite com ela, 1969) e um suposto neorealismo francês, que o marcou com O signo do leão (1959). Domingos Oliveira, por sua vez, começou solitário no Brasil em 1967 e chegou a Juventude, em 2008, fiel a si mesmo e avesso aos modismos de última hora.

Se existe um cineasta brasileiro da atualidade que vale a pena conhecer de ponta a ponta é Domingos Oliveira, e Juventude pode ser, em sentido inverso, o princípio do iceberg.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

LEITURA DE BOLSO, 2: UM NEGÓCIO FRACASSADO

Trinta e oito contos de Anton Tchékhov (1860-1904) organizados, traduzidos e prefaciados por Maria Aparecida Botelho Pereira Soares, agraciada com a medalha Aleksandr Serguêivitch Púchkin, pelos "grandes serviços prestados à divulgação da língua russa", outorgada pela Associação Internacional de Professores de Língua e Literatura Russas. Trinta e oito contos aparentemente de humor do escritor russo que foi um dia chamado de gênio por outro gigante da literatura russa, Tolstói. "Todos nós somos grandes escritores", disse Tolstói a Górki, "mas ele", e apontou Tchékhov, que passeava sozinho, ao largo, na fazenda de Tolstói, "ele é o maior, é um gênio".

Nestes contos, que em geral não vão além de quatro ou cinco páginas, Tchékhov exercita seu olhar impiedoso e sua pena crítica, fixando-se nos tipos humanos da vida russa, como as governantas, os preceptores, os funcionários públicos do alto e do baixo escalão, os militares, os estudantes, os maridos, as esposas infelizes, as adolescentes sonhadoras. Seu humor, vazado de melancolia, é mais irônico que engraçado, e nas entrelinhas das histórias, completamente banais, vai muito de não-dito, de sugerido, de disfarçado e terrível. Dramas, decepções, loucura, traições, dores, amores frustrados, desprezo pela vida humana, desdém pelos subalternos, autoritarismo e exercício de poder, ambição desmedida e a corrupção do funcionalismo público, covardia e canalhice, tudo através de uma lente opaca e que não aumenta nada, pelo contrário: deixa diminuto mesmo, porque assim é a vida.

Num dos contos, uma mulher revela a um escritor (o próprio Tchékhov talvez), durante uma viagem de trem, o quanto sacrificou de si mesma para melhorar de vida casando-se com um velho rico. Mas os anos passaram, ele morreu, e o que lhe restou foi... casar-se com outro velho rico. Tchékhov encerra a narrativa deste horror sem qualquer comentário, cortando para o cotidiano e a natureza: "O leque, quebrado, cobre o rostinho bonito. O escritor apoia sua cabeça pensativa no punho, suspira e se põe a refletir, com ar de psicólogo e especialista. A locomotiva assobia e solta chiados, as cortinas das janelas ficam avermelhadas ao sol poente".

O preço que se paga por esta "guloseima sagrada" e muitas outras é baixo, e o livro compensa em dobro cada centavo: R$13,00.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

VÁ E VEJA, 14: ROCCO E SEUS IRMÃOS

A estrutura desta obra-prima de Luchino Visconti é a romanesca, ao passo que a maioria dos filmes elege como veículo de realização a forma clássica do conto, que, grosso modo, pode ser resumida assim: 1)prólogo, 2) problema ou conflito, 3) desenvolvimento, 4) auge, 5) desfecho, e 6) epílogo. Quando a forma é a romanesca, tudo se transforma noutra coisa, pois o romance é o gênero de todas as possibilidades. É o gênero informe, destituído de um fluxo ideal e que flerta com outros registros de escrita: a narrativa histórica, o ensaio, o discurso acadêmico, o relato memorialístico, o panfleto político, o texto jornalístico e de publicidade, a redação epistolar, o diário íntimo etc. O romance, inclusive, é o gênero da liberdade no tempo e no espaço. Exemplos: O som e a fúria, de Faulkner, A lei, de Roger Vailland, Dom Carmurro, de Machado de Assis, A colmeia, de Camilo José Cela, Um amor, de Dino Buzzati. Pode ter, e quase sempre tem, vários personagens ou um só, mas o que não pode faltar é a liberdade de criação e expressão.

E é nisso que Rocco e seus irmãos se apoiou. Não é à toa que vários escritores assinam o roteiro. E também não é à toa que o filme se divide em cinco capítulos, cada qual enfocando um dos cinco irmãos, embora o personagem central seja Rocco (interpretado pelo jovem Alain Delon), o mais humano e o mais verdadeiro do grupo, consequentemente o mais romanesco e heróico, de acordo com a fórmula primordial do gênero, que reza que ele vai sofrer de tudo um pouco e, ao fim, se redimir.

Visconti não poupa meios de expressão e faz um filme com humor, dor, amor, ação, drama familiar, luta de boxe, trabalho inútil e fatigante, crime e algum heroísmo, ainda que em silêncio ou tom menor. Um folhetim, por excelência, mas com arte, beleza estética, reflexão sobre o nosso tempo e a condição humana, e cenas maravilhosas que influenciaram cineastas no mundo inteiro (Wong Kar Wai, por exemplo), como a sequência sem falas em que Rocco se encontra com Nadia (Annie Giradot), tomam o bonde e, abraçados, num oásis de ternura e paixão, veem a cidade circular à sua volta, ao mesmo tempo com um olhar de aprovação e outro de ameaça àquele idílio privado de culpa.

Se você quer assistir a um monumental clássico do cinema mundial, de três horas de duração e ao longo do qual todos os nossos sentidos são espicaçados (pois chegamos a sentir o cheiro de lama e podridão humana na cena de estupro, e a provar o sal da pele de Nadia durante a cena de intimidade com Simone, processo sinestésico que somente o rigor pelo detalhe, marca de Visconti, torna possível), Rocco e seus irmãos é a melhor e, talvez, a única opção. Uma aula exemplar de "romance cinematográfico".

sábado, 8 de janeiro de 2011

FAHRENHEIT E A LEITURA IDEAL

Recebi ontem os exemplares de minha cota da Portal Fahrenheit, a última das seis revistas de contos de ficção científica idealizadas e concretizadas pelo Nelson de Oliveira. Confesso que sentirei falta desta recorrente missão: a cada seis meses escrever um conto original no gênero, enviar ao Nelson, esperar aprovação e, por fim, a publicação. Além do prazer de ver o conto impresso, depois de tanto trabalho, afinal de contas não reviso pouco meus textos, há a espera pelos demais relatos, saber o que os outros autores estão escrevendo, como estão pensando o mundo atual pelo ponto de vista da ficção científica.

Na verdade, a literatura, mesmo ambientada no futuro ou no passado, volta-se para o presente, com o propósito de expressá-lo, julgá-lo ou simplesmente ironizá-lo. Se o leitor vai sair transformado da leitura e, com isso, tentar transformar o meio em que vive e o mundo, é consequência de quem é o leitor, de sua formação e de suas expectativas. No tempo em que vivemos, e com a educação que temos (a todo momento questionada por novos e inesperados valores, nem sempre valiosos, com o perdão do paradoxo), a recepção de qualquer texto literário é sempre um enigma, e a tendência de quem lê é, não satisfeito com o que leu, julgar o autor incompetente e seu texto ruim. Há ainda o fato, desalentador, de que muitos leitores não julgam o texto pelo que ele é e apresenta, mas simplesmente pelo que esperam dele. Se este é o tipo de leitura, é melhor não ler.

A leitura ideal é aquela que fornece "a paisagem nova de uma mesma janela". Imaginemos um sujeito que more num lugar ermo e distante e do qual, por um motivo qualquer, não possa sair jamais. Todos os dias, quando acorda e olha pela janela, a paisagem é sempre a mesma, apenas com as variações, preexistentes, das estações do ano: sol, flores, nuvens, chuva etc. Essa paisagem constante é a que a janela de suas expectativas abre, diariamente, pois não há solução para mudá-la, a não ser que ele pudesse partir. O que ele espera, acomodado à sua condição, é o que ele vê, num desenho quase perfeito. No âmbito da leitura é a mesma coisa. Se temos expectativas, conforme nosso gosto ou nossos interesses, "mesmificamos" o que pretendemos ler, e, assim, se por acaso o desenho não coincidir, a leitura não converge. Os "dois desenhos" (texto e leitura) não se encaixam. É como se pela mesma janela de sempre entrasse uma nova paisagem, que nossas expectativas, no entanto, previamente já recusavam. Deste descompasso advêm os julgamentos inexatos e perversos, oriundos da evidência (inconsciente) de que o texto está em desacordo com o que somos. É muito mais fácil, diante da falta de parâmetros, julgar um texto ruim do que julgá-lo pelo que ele é, por ser esta "paisagem nova de uma mesma janela".

Durante a leitura, ao "acordarmos" diante desta nova paisagem, não podemos virar para o outro lado e continuar a "dormir" na expectativa do mesmo amanhã, daquela paisagem de sempre. Naturalmente, alguns dos melhores textos de literatura são os que por sua estranheza nos abrem uma paisagem nova. Mas precisamos estar à janela e com o olhar puro.

Quadro: Edward Hopper (1882-1967).

sábado, 1 de janeiro de 2011

VÁ E VEJA, 13: LE BONHEUR

Le bonheur (1965), que recebeu no Brasil o péssimo título As duas faces da felicidade, é um dos mais bonitos, sedutores e cifrados filmes franceses da década de 1960. Dirigido por Agnès Varda, que também assina o roteiro, Le Bonheur constitui uma narrativa completamente aberta a interpretações e significados, além de um exame despretensioso sobre o que é a família, o amor, o sexo, o homem e a mulher.

Uma das reflexões mais visíveis que o filme apresenta, e que mesmo o espectador mais distraído não está longe de alcançar, propõe uma espécie de revisão, em versão moderna, fundada talvez no espírito da contracultura daquela década, do paraíso cristão; como ele poderia ter sido se Adão e Eva, por sua “falta”, não tivessem sido expulsos. Um paraíso onde haveria amor, crianças, trabalho, amigos, fins de semana, passeios no campo, sonecas nas tardes de domingo, amantes e especialmente sexo. Com isso, Varda nos diz, indiretamente, que o paraíso é a própria vida e que, ao nos expulsar daquele lugar aprazível dos primeiros tempos, e que Adão e Eva supostamente teriam maculado, Deus, na verdade, nos devolveu ao verdadeiro Éden: a vida humana. A cobra e a maçã eram, portanto, uma charada.

Agnès Varda, que começou como fotógrafa, nasceu na Bélgica, mas se notabilizou na França. É considerada, hoje, a precursora da Nouvelle Vague, movimento cinematográfico francês encabeçado por Jean-Luc Godard e François Truffaut, e com seguidores de primeiro momento como Claude Chabrol e Eric Rohmer. Seu estilo neste filme é vívido, claro e espontâneo, lembrando às vezes a “reserva autoral” do seu contemporâneo Robert Bresson. Usa a cor como marcação narrativa e também como representação tanto do verão, cenário edênico do filme, quanto da felicidade do protagonista. Quando a cor se ameniza, é porque a felicidade também se atenua. A música, de um Mozart quase abstrato, contrasta com a atmosfera de cor, luz e encanto que envolve os personagens.

Le bonheur recebeu três prêmios internacionais em 1966: o Louis Delluc, o David Selznick e o especial do Festival de Berlim.