"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sábado, 27 de abril de 2013

QUASE QUE SÓ HÁ DITADURAS

Em O perseguidor, a liberdade é o artista.
"Ora, para onde olhamos há uma ditadura em curso... Cultural, política, econômica, literária, acadêmica, de gosto... Ditadura de um tipo de cinema, de um tipo de livro, de um tipo de política cultural, de uma teoria ou uma crítica... De magreza, de beleza, de juventude, de cor, de raça, de sexo... De comportamento. Quase que só há ditaduras. E, qualquer que seja o autor, ele precisa ser livre. Não escrever nem para alguém nem para uma causa."

Trecho de entrevista que concedi ao blogue de literatura do iBahia. Quem se interessar por ler mais, acesse aqui.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

MAIGRET E O SILÊNCIO DO POETA

Porto Alegre: L&PM, 2010.
Quando soube da morte do poeta Alexandre Coutinho, eu estava lendo Maigret e o matador (1969), de Simenon. Foi o sexto romance com o célebre comissário que li só este mês. No momento, estou na metade do nono: Os escrúpulos de Maigret (1958). Por coincidência, o tema daquele livro é o assassinato de um jovem estudante de Letras, que tinha o hábito de sair, nas noites de Paris, gravando as conversas das pessoas que encontrava, como um "fotógrafo" do som, das palavras. Bares, restaurantes, boates, estações, cafés, praças e bistrôs, nenhum lugar público escapava à sua pesquisa in loco. Mas vejamos no que consiste a coincidência. Ora, se o personagem de Simenon procurava registrar a vida em seu gravador portátil, o poeta Alexandre Coutinho o fazia através de seus poemas... Há ainda a certeza de que ambos não se achavam confortáveis no mundo, como boa parte dos artistas, excetuando-se aqueles que se dedicam ao entretenimento. Eram, por assim dizer, seres inadaptados e talvez por isso fizeram da palavra o seu universo. É o que compete aos poetas: uma vez que a existência não basta, lançam mão das palavras, com o propósito de torná-la mais compreensível e suportável, se não melhor, e não apenas para si mesmos, pois também os leitores e ouvintes acabam por usufruir de suas epopeias verbais e se inquietam. O personagem de Simenon morreu em meio a uma coleta de sonoros "documentos humanos", ao passo que Alexandre Coutinho suprimiu a própria vida por ser ela mesma um documento humano, incorrigível e inadiável. Não foi o melhor poema que escreveu, mas foi o último e o mais grave, aquele pelo qual jamais será esquecido. Como uma inesperada lanterna a iluminar a trilha numa noite de tempestade, ele nos fez entender que, por mais exatas que sejam, as palavras falham, não dizem o suficiente ou tão somente esbarram na indiferença do mundo, e que, diante desta verdade, só resta ao poeta calar-se. Que a terra lhe seja leve!

quarta-feira, 17 de abril de 2013

CIDADE SINGULAR | ENTRADA


O texto abaixo compreende a seção 11 do conto De ratos e homens, que está no livro Cidade singular (Kalango, 2013), a ser lançado em 29 de abril, no restaurante Casa de Teresa, Rio Vermelho, às 19 horas. Comecei a escrevê-lo em 1995, e a primeira pessoa que o leu foi Josélia Aguiar, jornalista em São Paulo, e que foi minha colega no marketing do Banco Econômico. Apesar dos elogios que ela fez, o conto em si jamais me contentou e, ao longo dos anos, o trabalhei incansavelmente. A última versão é, a rigor, de dezembro de 2011, mas não hesitei, diante das provas do livro, no mês passado, em muda-lo mais uma vez. Espero que o leitor o aprecie e, depois, o leia na íntegra. Josélia Aguiar foi a primeira pessoa que me incentivou a publicar um texto, ao levar meu conto Bicicletas para o extinto caderno A Tarde Cultural, em 1995 ou 1996. E, para a minha surpresa, num dos eventos literários a que compareci em 2012, um senhor se aproximou de mim, me cumprimentou e disse que lera meu conto Bicicletas e ainda o mantinha guardado. Este foi um dos maiores elogios que já recebi.
                                               
11

Não encontrei meu pai nem meus irmãos. Percorri todo o anzol de areia e não os vi. Também já era tarde, quase meio-dia. Pensei que talvez já tivessem voltado, estivessem em casa, com minha mãe, prontos para almoçar, e que eu os atrasava. Mesmo assim, não contive o desejo de me prolongar um pouco mais em meio àqueles biquínis minúsculos. Perto da Praia Negra, surgiram os primeiros seios nus. Eram miúdos e belos, de uma tonalidade mais clara e macia, que os evidenciava já à distância. Causou-me surpresa o fato de que os poucos homens que ali estavam não os olhassem. Ou não representavam um gosto, um gozo? Para mim, que pouco os tinha visto, eram frutos do paraíso.
Ao fim de mais ou menos uma hora, eu tinha sede e, fatigado, com o pensamento meio turvo de tanto ver seios nus e procurar, sob os finos tecidos úmidos de suor e sal, uma intimidade, decidi ir embora.
Mal deixei para trás o Iate Clube e entrei pelo extenso trecho de terra que levava à nossa casa, ouvi um pesado ruído de motor, que foi crescendo e logo me ultrapassou. Os dois únicos caminhões do Corpo de Bombeiros do município me deixaram para trás, sufocado numa nuvem de poeira e incompreensão. Iam sem sirenes, e isso na hora me intrigou. Depois, em conversa com meu pai, ele esclareceu que as sirenes são limpa-trilhos, não colônia pós-banho.
Era impossível seguir os caminhões. Por isso, me contentei em tentar identificar, à frente deles, o local do incêndio ― se é que era um incêndio. Podia não ser. Crianças desapareciam em poços inativos, animais eram atropelados, trens abalroavam carroças ou carros no cruzamento que conduzia ao cemitério. Eram tragédias comuns, estas. Até então eu convivera com elas naturalmente. Ainda hoje acontecem, e quase com a mesma frequência dos afogamentos de verão, que não são poucos. Lus é uma luz que ofusca e nos empurra para a noite.
Só quando avistei o fio de fumaça no horizonte, foi que me dei conta de que do fundo de um dos caminhões o bombeiro Isaías me olhara de um jeito estranho, pesaroso, quase dócil. A fumaça preta subia do conjunto de casas de telhado simples, brancas, amarelas, verdes ou azuis, a minha no meio. (Cidade singular, p. 117-118)

Publicado originalmente na Verbo 21, em março de 2013.