"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sábado, 17 de agosto de 2013

CENTENÁRIO DE ALBERT CAMUS, 2

Além de romancista, contista e ensaísta, Albert Camus (1913-1960) foi polêmico dramaturgo. Quatro peças o tornaram um importante escritor de teatro e muito respeitado: O estado de sítio (1948), Os justos (1949), Calígula (1945) e O equívoco (1944). As duas últimas foram reunidas num só volume pela editora portuguesa Livros do Brasil, de Lisboa, em edição sem data. Pelo que se sabe, é a única em língua portuguesa.

Em Calígula, Camus transforma o imperador romano, um dos mais cruéis da história de Roma, num homem solitário, amargurado pela morte de sua irmã Drusilla, seu único amor, e sempre à procura de uma liberdade plena, simbolizada pelo exercício absoluto do poder: "Este mundo, tal como está feito, não é suportável. Tenho, portanto, necessidade da Lua, ou da felicidade, ou da imortalidade, de qualquer coisa de demente, talvez, mas que não seja deste mundo", ele decreta logo no início. Daí por diante, confisca o dinheiro e os bens dos romanos, humilha-os, tripudia dos Deuses, das leis e dos poetas, desdenha da opinião alheia, pratica a tortura psicológica e principalmente mata, sem piedade. Nada muito diferente das práticas dos governantes contemporâneos, com a diferença de que, em Calígula, há um propósito "mais elevado", uma certa filosofia do caos, que o faz afirmar: "Acabo de compreender, enfim, a utilidade do poder. Ele dá as suas oportunidades ao impossível. Hoje, e por todo o tempo que virá, a minha liberdade não tem fronteiras".

Em O equívoco, cuja trama já aparece esboçada num breve trecho de O estrangeiro, Camus ironiza com o tema bíblico da volta do filho pródigo e escreve um de seus dramas mais gélidos e sombrios: depois de vinte anos ausente, Jan volta para o lar, a pensãadministrada por sua mãe e sua irmã; quer lhes fazer uma surpresa e, como não é reconhecido, registra-se com um outro nome; ele pretende ajudá-las financeiramente, mas não sabe que elas vivem há anos de roubar e assassinar os moradores da pousada, sobretudo os homens, e ele pode ser a próxima vítima... Ironicamente, uma das falas capitais da peça, pronunciada pela mãe de Jan, é: "É mais fácil matar o que não se conhece". Ou seja, o filho. Como em O estrangeiro, o responsável pelos atos da irmã é o sol, tropical e apaziguador, capaz de aliviar-lhe a inércia e a solidão, e sob o qual espera obter, afinal, a felicidade, longe de um "país de nuvens". Já a mãe, ela mata para descansar, chegar a um termo, como o protagonista de A morte feliz, romance póstumo de Camus e uma de suas melhores obras: a riqueza que ambos adquirem por matar justifica seu ato.

Nas duas peças, de caráter reflexivo, Camus emprega a ação dramática com o propósito de expor o seu pensamento, em especial a ideia de que a existência humana é absurda em si, uma vez que existe a morte, destino incontornável. Incapaz de driblá-la, o homem fica a meio caminho entre uma liberdade relativa e a felicidade possível, jamais alcançada: "Os homens morrem e não são felizes". Este é um de seus aforismos mais célebres e que, pronunciado por Calígula, adquire um sentido dúbio: de lamento e de sarcasmo. E é igualmente pelos lábios de Calígula que se chega a uma afirmação ainda mais cáustica, muito embora utópica, para não dizer verdadeira: "Este mundo não tem importância, e quem reconhece isto conquista a sua liberdade". Liberdade, desprezo e, talvez, felicidade têm uma só face.

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