"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

LEITURAS, 42: HAIKUS

Desenho da capa: Júlia Debasse.
"Pague o dinheiro que me deve, não seja mau amigo. Se soubesse como ele está me fazendo falta, não o estaria gastando em coisas desnecessárias, embora você pense que lhe são necessárias, e me devolveria tudo, mesmo que representasse um sacrifício para você, o que não é o caso. O pior é que você sabe muito bem disso, e não dá a mínima. Sabe a penúria em que ando; se não me paga, não é porque o ignore."
 
Assim começa a novelinha Haikus, de César Aira, escritor argentino, nascido em 1949 e considerado um dos mais importantes do período posterior a Borges e Cortázar.
 
Não obstante seu assunto trivial, uma dívida monetária, o texto estabelece uma reflexão bem mais vasta e profunda, que envolve, inclusive, a sobrevivência do planeta. É nas mãos de pessoas que exploram aos homens e à natureza, nossos "devedores", que está o destino de todos nós, e estas pessoas, em geral, não têm escrúpulos: são governantes, religiosos, comerciantes, astros da mídia e da cultura pop, industriais, cantores da axé-music e do pagode etc.
 
Publicada no Brasil na coleção Pipa Livros, da editora Dantes, em tradução de Carlito Azevedo, Haikus ganhou tiragem de somente 400 exemplares numerados, destinados a bibliófilos, de acordo com a proposta autoral de Aira, que prefere chegar ao leitor específico, de literatura, que realmente lê pelo prazer estético e proveito cognitivo que a obra proporciona.
 
Com mais de 70 obras publicadas, ele privilegia as editoras pequenas, quando não as mini-editoras, em edições de curto alcance, ciente de que a maior qualidade de um texto literário reside na forma como o assunto é abordado, ou seja, na estética. Sem isso, e se tiver algum êxito, a obra não passa de moda de momento, o hit da estação. E a razão recomenda que não devemos dar pérolas aos porcos.
 
Haikus foi lançado no Rio de Janeiro em março de 2012 e ainda não esgotou.
 
Curiosidade: meu exemplar, de número 265, estava perdido numa loja da Saraiva, dentro de outro livro. Como suas dimensões são de bolso (11x15cm), meteram-no dentro de um livro qualquer, e ali ele ficou, não sei se escondido por algum leitor que não o pôde comprar de imediato ou se separado pelo acaso para que eu o encontrasse.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

LEITURAS, 41: OS AMORES DA PANTERA

José Louzeiro não põe maquiagem no fato. Mantém a Pantera como vítima de seus carrascos, mas não deixa de sugerir que, por sua conduta, ela teve igualmente a sua parcela de culpa. Quem não quer se afundar não se acerca da areia movediça. Se no crime americano da Dália Negra moviam-na a solidão e o desespero, no da Pantera, ao contrário, o que a faz se perder é o dinheiro e, em dosagem não menos decisiva, certo prazer pelo risco, alimentado por longas imersões alucinógenas e frequentes orgias.
 
Os criminosos ficaram impunes, mas a vítima, não. Tanto na vida quanto na literatura, há certa coerência nos fatos, sacramentada pela relação de causa e efeito. Qualquer passo dado ou a ausência dele levarão a um termo, a uma consequência. O provérbio não falha: se vou morrer nas montanhas, nem preciso ir lá. Foi esta a lógica da Pantera, que, em certo trecho da narrativa, a intui e não parece se abalar. A sabedoria do não-agir pode ter também as suas consequências nefastas. Ou nosso percurso sobre a Terra, nas palavras de Henri Borel, não é senão isto: "Um homem surge das trevas, sorri por um instante ao clarão da existência, e logo desaparece". Curta ou longa, a vida é a mesma vida. (Ler a postagem completa).

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

LEITURAS 40: A HORA FINAL

Primeira edição brasileira, de 1958.
Muito antes de o fim do mundo virar gênero literário e cinematográfico, o escritor australiano Nevil Shute publicou o seu A hora final (On the beach), especulando sobre o fim da humanidade, após um terrível holocausto nuclear, que dizimou toda a banda norte do planeta.
 
Este romance teve duas ou três edições no Brasil e ficou conhecido entre nós muito mais por influência do filme homônimo, dirigido por Stanley Kramer, com Ava Gardner, Gregory Peck, Anthony Perkins e Fred Astaire nos papéis principais, que pela quantidade de leitores entusiasmados. Aliás, é sempre assim com qualquer obra que, depois de sucesso de venda e crítica no exterior, acaba transformada em filme. O sujeito se sente orgulhoso de revelar que não leu o livro, mas viu o filme.
 
Publicado em inglês em meados dos anos 1950 e ambientado profeticamente em 1963, narra os últimos meses da Austrália, um dos poucos países que não foram varridos da face da Terra pela guerra nuclear, deflagrada por Rússia e China, e que acabou por envolver todas as grandes potências, como EUA, França, Itália, Alemanha e Reino Unido. Só o Hemisfério Sul sobreviveu, e entre os países remanescentes estão, além da Austrália, África do Sul, Brasil, Uruguai, Argentina, Nova Zelândia, boa parte das ilhas do Pacífico, Tasmânia etc.
 
Um casal com sua filhinha que começou a engatinhar; uma jovem alcoólatra, irônica e niilista, incapaz de se conformar com o que houve; o capitão do submarino Skorpio, cuja família, residente nos EUA, não existe mais, mas não para ele; um cientista que, sabendo que todos vão morrer em mais ou menos seis, sete meses, desiste praticamente da carreira e se torna piloto de corridas de automóvel; um fazendeiro que, ao saber que os animais sobrevivem mais tempo que as pessoas em meio à radiação que mortalmente desce do Norte para devastar o Sul, não para de pensar em quem vai alimentar seu gado depois de sua morte... Personagens em situação extrema e irreversível e que se movem entre o dilema de conservar esperança ou aceitar a morte iminente. 
 
Escrito com precisão de estilo e a objetividade característica do romance de especulação futurista, sem abrir concessões para abarcar um público mais vasto, nem dele se afastar, por ensejo intelectual, A hora final representa um tempo em que os grandes livros ainda eram escritos para ser lidos com prazer e proveito, e não para agradar a um público específico, de leitores medianos, ou ao mundo acadêmico, de leitores frios.
 
Abre-o uma epígrafe extraída de um dos mais belos poemas de T. S. Eliot, Os homens ocos, e fecha-o a certeza, expressa no poema e desenvolvida no romance, de que os homens são e serão capazes de, por ambição, capricho ou orgulho, acabar com o planeta, se não com um estrondo, com uma lamúria, que é o que resta aos australianos sobreviventes, mas que, ainda assim, até o último momento, se agarram ao que a vida tem de mais precioso: o entusiasmo de viver.

Esperemos que em breve alguma editora brasileira se empenhe em relançar, no Brasil, este clássico definitivo, cujas cores, à medida que o mundo avançou e aparentemente se livrou da bomba, ficaram ainda mais fortes, em tons quase berrantes. Se assim for, garanto que os leitores não vão se arrepender da leitura. Os grandes livros são os que superam todos os obstáculos e, mesmo melancolicamente, continuam a nos mostrar a verdadeira face do mundo.

EU NO LABIRINTO

No Sebo Labirinto encontram-se alguns livros meus. Todos novos e a preços mais convidativos que nas livrarias comuns, exceção feita ao mais recente, As aventuras de Nicolau & Ricardo: detetives (Penalux, 2014), cujo lançamento será em breve. Entre os títulos está o último exemplar realmente novo do Dizer adeus (K, 2005), esgotado há algum tempo. Se tiver interesse, clique aqui.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

A COCOPA DA ÉPOCA

Cacófato, segundo o dicionário Aurélio, é "som desagradável, palavra obscena ou palavra distinta, proveniente da união das sílabas finais de uma palavra com as iniciais da seguinte". E exemplifica com as clássicas: "vi ela", "alma minha", "ela tinha" (muito comum atualmente, no jornalismo e na literatura) e outras, menos risíveis. Mas deixou de fora a mais comum do cancioneiro lírico atual da música brasileira de baixa qualidade, disseminada por rádios, tevês e internet: "eu amo ela".
 
Que o compositor sem muito talento, no calor da criação, cometa as suas cacofonias ou o escritor de livros da moda, pressionado pela criação a toque de caixa e que só se importa com a história, vá lá! Mas uma revista de circulação nacional, como a Época, que se apregoa formadora de opinião, cunhar uma chamada assim, e ainda mais na capa: "O risco Copa"!
 
Um pouquinho de cuidado não seria demais. E ainda mais que, volta e meia, a Época e suas rivais acusam os professores brasileiros de "não ensinar a gramática correta". Olhar o próprio rabo nem sempre é fácil.
 
Todavia, o que se deve perguntar é quem é o seu editor geral, quantos anos ele tem, o que faz, o quanto sabe, o que lê e se consegue detectar, de ouvido e semanticamente, uma cacofonia. No passado, quem exercia tal função era, por tradição, uma parede de experiência e saber. Hoje... Deixa pra lá! Talvez o editor geral da Época seja gago.
 
Estamos mesmo por promover uma Cocopa.