"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 59: LI PO

A arte do pintor chinês Zhao Wuchao.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

A DANÇA DOS DEUSES

Pus toda a minha alma numa canção
que cantei para os homens. E os homens se riram!

Tomei meu alaúde, fui sentar-me no topo de uma montanha
e cantei para os deuses a canção que os homens
não tinham entendido.

O sol baixava. Ao ritmo da minha canção, os Deuses dançaram
nas nuvens encarnadas que flutuavam no céu.

LI PO (701-762). Poeta chinês, traduzido aqui por Cecília Meireles. Além de poeta exímio, foi espadachim e beberrão contumaz. Sua facilidade para escrever era exaltada por outros poetas. Reza a lenda que morreu afogado tentando abraçar a lua. Tradução extraída de Poemas chineses (Nova Fronteira, 1996).

domingo, 26 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 58: D. H. LAWRENCE

Voo, aquarela de Philip Jamison.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

O MOSQUITO SABE

O mosquito sabe, embora sendo tão pequeno,
que é um bicho de rapina.
Mas pelo menos
ele apenas enche a sacola,
não bota meu sangue no banco.

D. H. LAWRENCE (1885-1930). Romancista, contista ensaísta e poeta inglês. Autor d'O amante de Lady Chatterley, um dos romances mais polêmicos do século XX. Sua excelência como prosador ofusca-lhe o valor como poeta. Seus animals poems, irônicos a toda prova, são muito conhecidos e cultuados. A tradução aqui é de Jorge Wanderley e está em 22 ingleses modernos (Civilização Brasileira, 1993).

sábado, 25 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 57: MURILO MENDES

Parque de Luxemburgo (1905), de Eliseu Visconti.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

MODINHA DO EMPREGADO DO BANCO

Eu sou triste como um prático de farmácia,
sou quase tão triste como um homem que usa costeletas.
Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher
mas só ouço o tectec das máquinas de escrever.

Lá fora chove e a estátua de Floriano fica linda.
Quantas meninas pela vida afora!
E eu alinhando no papel as fortunas dos outros.
Se eu tivesse estes contos punha a andar
a roda da imaginação nos caminhos do mundo.
E os fregueses do Banco
que não fazem nada com estes contos!
Chocam outros contos pra não fazerem nada com eles.

Também se o Diretor tivesse a minha imaginação
O Banco já não existiria mais
e eu estaria noutro lugar.

MURILO MENDES (1901-1975). Poeta brasileiro, nascido em Juiz de Fora, MG. Um dos mais importantes do nosso vernáculo, mas também um dos mais subestimados. Participou da grande renovação que o Modernismo promoveu em nossas letras, com seu estilo singular, de tom a um só tempo solene e jocoso, unindo coloquialismo e imagens suprarreais. O poema acima está em Poemas (1930).

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 56: DRUMMOND

Serenata, de Cândido Portinari.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

TAMBÉM JÁ FUI BRASILEIRO

Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.

Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia perturbou-se.

Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isto, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter um ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902-1987). Poeta, contista e cronista brasileiro, nascido em Itabira, MG. Foi um dos maiores e sempre o será, ao lado de quatro ou cinco poetas do idioma. Sua capacidade de variação de motivos e de fusão do literário com o coloquial impressiona até hoje. Poeta único, profuso e imprescindível. O poema acima, de Alguma poesia (1930), foi extraído de Nova reunião (Best Bolso, 2011).

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 55: JULIA P. FARNY

A noite estrelada (1889), de Van Gogh.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

VI

E, um dia, será o fim. O fim incerto:
as selvas arderão, pira selvagem,
será o fácil momento da pilhagem,
a hora do terror, do desconcerto.

As naves vagarão no mar aberto,
sucumbirão cidades na voragem.
Rasgar-se-ão as virgens, farão viagem
de fuga as caravanas ao deserto.

E, então, será o fim: nos ares, langue
rumor de enxame, olor de mirto e sangue
e um estalar crescente de querelas,

crispadas mãos, bocas em fogo, pranto.
Além, no irado céu, prossegue, entanto,
a marcha inexorável das estrelas.

JULIA PRILUTZKY FARNY (1912-2002). Poetisa argentina, nascida na Ucrânia, e exímia sonetista. Sua principal obra, Antología del amor (1977), inédita no Brasil, ultrapassou vinte edições em 1993, chegando a mais de 200 mil exemplares, algo realmente incomum para um livro de poesia.  O soneto acima, extraído daquela obra, foi traduzido por Anderson Braga Horta, em seu livro Traduzir poesia (Thesaurus, 2004).

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 54: Edwin ROBINSON

A pintura de Bob Dylan.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

RICHARD CORY

Quando Richard Cory vinha à cidade
            Nós todos o olhávamos, nós gentios:
Era um completo senhor, na verdade,
            Tão bem dotado, imperial e esguio!

Era discreta a roupa que escolhia
            E era sempre humano quando falava;
Mas alterava os pulsos, seu "bom-dia",
            E ele esplendia, quando caminhava.

Como um rei, era rico! E todo encanto,
            Toda virtude lhe era conhecida:
Para nós, em resumo, tinha tanto,
            Que bem queríamos viver-lhe a vida.

Assim seguimos, maldizendo o pão
            Como quem só deseja que amanheça...
E Richard Cory, em noite de verão,
            Matou-se com uma bala na cabeça.

EDWIN ARLINGTON ROBINSON (1869-1935). Poeta estadunidense, muito popular nos anos 1920, quando foi considerado o "maior" do seu país. Richard Cory é o seu poema mais célebre, algo assim como a Canção do Exílio para nós brasileiros. A tradução é de Jorge Wanderley, extraída da Antologia da nova poesia norte-americana (Civilização Brasileira, 1992).

terça-feira, 21 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 53: Eugênio de CASTRO

Gustav Klimt pintava o tempo através das pessoas.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

SOMBRA E CLARÃO

De mãos dadas, lá vão avó e neta,
A Saudade e a Esperança de mãos dadas!
A neta é loira, a avó tem cãs prateadas,
Uma leva a boneca, outra a muleta.

Uma arrasta-se e a outra salta inquieta;
Aos suspiros vai uma, outra às risadas;
A avó desfia contas desgastadas,
E a neta colhe iriada borboleta.

Uma vai confiada, outra bisonha;
Uma lembra-se, triste, e a outra sonha;
Leves asas tem uma, outra coxeia...

E eu, que as vejo passar, com mágoa infinda
Penso que a avó talvez já fosse linda,
E que a neta, que é  linda, há de ser feia!

EUGÊNIO DE CASTRO (1869-1944). Poeta português, um dos nomes estelares do Simbolismo, muito embora jamais tenha conseguido chegar a ser um poeta popular. Foi também editor, responsável pela revista Arte (1895-97). O soneto acima, que integra o volume Descendo a encosta (1924), é possivelmente um dos mais belos e perfeitos da língua portuguesa.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 52: SOPHIA DE MELLO

Arredores de Moscou, em novembro de 1941 (1941), de Alexander Deineka.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

O SOLDADO MORTO

Os infinitos céus fitam seu rosto
Absoluto e cego
E a brisa agora beija a sua boca
Que nunca mais há-de beijar ninguém.

Tem as duas mãos côncavas ainda
De possessão, de impulso, de promessa.
Dos seus ombros desprende-se uma espera.
que dividida na tarde se dispersa.

E a luz, as horas, as colinas
São como pranto em torno do seu rosto
Porque ele foi jogado e foi perdido
E no céu passam aves repentinas.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN (1919-2004). Poetisa portuguesa. Talvez forme com Cecília Meireles e Florbela Espanca a tríade de excelência da poesia feminina do vernáculo. Fartamente musical, lírica e com imagens surpreendentes, sua poesia inebria o leitor sem jamais fatigá-lo. O poema acima consta da Antología poética (Huerga & Fierro, 2000), bilíngue espanhol-português.

domingo, 19 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 51: TOMLINSON

The chemin, de Alfred Sisley.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

AQUEDUTO

Que ele se erga
Um hóspede de pedra
Numa terra inóspita,
A sua fala, a fala da fonte,
Voz da nascente descerrada,
De onde transporta
Seu próprio sustento. A sua graça
Tem de igualar
A força da corrente,
E que o tom
De flauta das águas
Inunde de suaves avisos a pedra da conduta.

CHARLES TOMLINSON (1927). Poeta inglês, dos mais admirados da atualidade. Seu estilo, sóbrio e elegante, permite que ele passeie por qualquer assunto, como o do poema acima, traduzido por Gualter Cunha, em Poemas (Cotovia, 1992). Não raro sua poesia reflete sobre os meandros do fazer poético, e é então que seu pensamento transborda de originalidade.

sábado, 18 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 50: Oliverio GIRONDO

A arte onírica do pintor argentino Xul Solar.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

MITO

MITO
meu mito
acorde de lua sem pijamas
ainda que me afundes tuas espinhas psíquicas
mulher pescada pouco antes da morte
aspirossorvo até o delírio tuas magnólias calefaccionadas
quanto decoro teu luxuosíssimo esqueleto
todos os acidentes de tua topografia
entretanto declino em qualquer tempo
tuas titilações mais secretas
ao precipitar-te
entre relâmpagos
nos tubos de ensaio de minhas veias

OLIVERIO GIRONDO (1891-1967). Poeta argentino, equiparado em gênio a Jorge Luis Borges, mas, em estilo, ambos são diametralmente opostos, qualquer que seja o critério de comparação. Foi uma das vozes renovadoras da poesia durante as vanguardas latino-americanas. O poema acima é do tardio A pupila do zero (Iluminuras, 1995), cuja edição original, sob o título En la masmédula, é de 1954. A tradução é de Régis Bonvicino.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 49: JOYCE KILMER

Cap Cod evening (1939), de Edward Hopper.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

ÁRVORES

Sei que nunca verei um poema mais belo e ardente
Do que uma árvore; uma árvore que encerra
Uma boca faminta, aberta eternamente
Ao hálito sutil e flutuante da terra.
Voltada para Deus todo o dia, ela esquece
Os braços a pender de folhas, numa prece.
Uma árvore que, ao vir do estio morno, esconde
Um ninho de sabiás nos cabelos da fronde.
A neve põe sobre ela o seu níveo diadema
E a chuva vive na mais doce intimidade
Do tronco, a se embalar nos galhos seus;
Qualquer néscio como eu sabe fazer um poema.
Mas quem pode fazer uma árvore? Só Deus.

JOYCE KILMER (1886-1918). Poeta, jornalista e crítico estadunidense. Seu livro mais conhecido é Árvores e outros poemas (1914), capitaneado pelo poema acima, célebre e soberbamente traduzido para o português por Olegário Mariano, que o deixou tão belo quanto no idioma de origem. Kilmer, cujo nome principal era Alfred, morreu na segunda batalha do Marne.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 48: Anton BUTTIGIEG

Pôr do sol em Roma, de Maja Wronska.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

AS NOITES ROMANAS

Recordo um inverno em Roma
quando jazias já sem forças
pela doença incurável;
noites de chuva pingavam sobre as folhas,
noites de lágrimas caíam sobre meu coração.
E ao amanhecer as folhas mais verdes,
ao amanhecer meu coração mais árido.

ANTON BUTTIGIEG (1912-1983). Poeta e estadista maltês, que chegou a ocupar a presidência de seu país de 1976 a 1981. Distinguiu-se na lírica especialmente com o excelente O mar de Malta, traduzido para o italiano em 1974 e depois para o português, pela Expressão e Cultura, em 1982, edição da qual se extraiu a tradução acima, assinada por Marli de Oliveira.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 47: VICENTE GERBASI

Catarse (1934), mural de José Clemente Orozco.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

PENUMBRAS SECRETAS

Encontrei a desdita ao amanhecer,
em um cavalo que sangrava
com a cabeça um pouco caída na erva
e o pranto de minha irmã de dois anos
que havia sido operada no ventre.

Senti um pouco de sangue nas mãos,
uma dor triste como um cabrito degolado,
uma pele posta a secar sobre as pedras.
Andei pelo ar frio das últimas estrelas
onde moravam galos dispersos,
e senti minha própria presença
na árvore iluminada no fundo da casa.

O dia acolheu o cavalo ferido
com o pranto de minha irmã nos olhos.
O dia me recluiu nos rincões escuros.
Segui sendo um triste que espanta as moscas da tarde
ou desenha uma igreja rodeada de aves marinhas.

VICENTE GERBASI (1913-1992). Poeta venezuelano. Estreou com Vigília do náufrago (1937) e, aos poucos, foi se consolidando como uma das mais importantes vozes líricas da América Hispânica. O Brasil tomou contato mais estreito com sua poesia através do volume Os espaços cálidos (Nossa América, 1988), do qual se extraiu a tradução acima, de autoria de Cleto de Assis.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 46: JOSÉ PAULO PAES

A sesta (1869), de Jacques Adrien Lavieille.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

CÚMPLICES

Quebrei minhas algemas contra o espelho
E a teus olhos tracei-me nova imagem,
Sem cólera, sem armas, sem viagem.

Agora sou apenas teu reflexo,
Um fantasma sem brilho e sem escadas.
O que fui pouco importa. É quase nada.

Desprezei os ardis, a ironia,
As mentiras de bronze, as vozes fátuas,
O fascínio enganoso das estátuas.

Ergo-me pobre e nu contra o horizonte.
Nenhum crepúsculo turva minha fronte.
Sob um cipreste enterrei os meus defuntos.

Atrás de mim ficou o espelho fútil.
Além de mim descubro céus inúteis.
Mas que importa o caminho? Estamos juntos. 

JOSÉ PAULO PAES (1926-1998). Poeta, tradutor, ensaísta e editor brasileiro, nascido em Taquaritinga, SP. Como tradutor de poesia, poucos se lhe ombreavam; como poeta, era puro estilo, variação, experimento, humor; como ensaísta, tinha a seu favor a inteligência, a contenção e a generosidade. O belo poema acima está em Um por todos (Brasiliense, 1986), que reúne toda a sua poesia até então.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 45: MYRIAM FRAGA

O andarilho, de George Grosz.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

TERROR

Esta é a lei
Que me deram,
Lei de cão.

Dente por
Dente,
Sinal de Talião.

Me botaram na praça
Nu
E pássaros
Vinham bicar-me
O ventre.

E arrancaram-me as unhas
E os segredos
E vieram outros pássaros
Rapaces
E me roeram os dedos.

Hoje o ódio é o melhor
Que me consentem.

Vou explodir um mapa
Cheio de gente.

MYRIAM FRAGA (1937). Poetisa brasileira, nascida em Salvador, BA. Lírica, diversa e sempre atenta às possibilidades poéticas, transita por experimentações constantes, como confirma o poema acima, de assunto indigesto, mas de uma atualidade extrema: o terror sempre tem uma causa, é a consequência, a reação a um ato, um procedimento. Poema inserido em As purificações (Civilização Brasileira, 1981).

domingo, 12 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 44: MÁRCIA MAIA

A morte, por Walter Sickert (1860-1942).
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

FOTOGRAFIA

à beira da estrada
um cemitério

cruzes enfeitadas com
coroas de primeira-comunhão

inocência estendida entre
as lápides

num misto de saudade e
decomposição

MÁRCIA MAIA (1951). Poetisa brasileira, nascida no Recife, PE. Estreou em 2001, na revista Poesia Sempre, número 15, da Biblioteca Nacional. Em livro, em 2003, com Espelhos. O poema acima está no volume Em queda livre (Bagaço, 2005).

sábado, 11 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 43: ÂNGELA VILMA

Amantes, de René Magritte.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

AMOR

Não existes, mas sinto teu sopro
no meu rosto, como o vento

e penso os sonhos do mundo
e canto as valsas do tempo

Não existes. Como miragem
desapareces quando te chamo

Mas sinto teu hálito quente
perdido, nesse abandono

ÂNGELA VILMA (1967). Poetisa brasileira, nascida em Andaraí, BA. Lírica como poucas de sua geração, capaz de embalar o leitor e aprisioná-lo em seus versos, canta o amor, sua falta ou sua impossibilidade de um modo que só Cecília Meireles alcançou em nosso idioma. O poema acima está em Poemas para Antônio (P55, 2010).

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 42: DANTE MILANO

A "irrealidade" de Pablo Picasso.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

GLÓRIA MORTA

Tanto rumor de falsa glória,
Só o silêncio é musical.
Só o silêncio,
A grave solidão individual,
O exílio em si mesmo,
O sonho que não está em parte alguma.

De tão lúcido, sinto-me irreal.

DANTE MILANO (1899-1991). Poeta brasileiro, nascido no Rio de Janeiro. Era retraído e alheio ao grande público. Sua poesia é exata, melancólica, num tom existencialista que não faz concessão à esperança: "Tudo é exílio", sentencia. Um dos maiores poetas da língua portuguesa e, claro, do mundo. Poesia e prosa (Civilização Brasileiea-UERJ, 1979) é um livro indispensável.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 41: EDNA S. V. MILLAY

Manhã, de Edvard Munch.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

SONETO

O amor não é tudo: nem carne nem
bebida, nem é sono, lar da gente,
nem a tábua lançada para quem
se afunda e volta e afunda novamente.
O amor não pode encher o pulmão forte,
pôr osso no lugar, tratar humores,
embora tantos deem a mão à morte
(enquanto o digo) só por desamores.
Bem pode ser, na hora mais doída,
ou da minha franqueza arrependida,
buscando alívio à dor, seja capaz
de vender teu amor por minha paz
ou trocar-te a lembrança pelo pão.
Bem pode ser que o faça. Acho que não.

EDNA ST. VINCENT MILLAY (1892-1950). Poetisa estadunidense das mais cultuadas. Estreou com Renascence and other poems (1917), livro que a tornou célebre e apreciada. Sua poesia é a de uma virtuose de sua matéria, pois não abre mão da técnica apurada, da beleza lírica e da exatidão sintática, mescladas estas a um tom de ironia e, não raro, de cinismo. A tradução aqui é de Paulo Mendes Campos e está em Trinca de copas (Achiamé, 1984).

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 40: GREGORY CORSO

Summer interior (1909), de Edward Hopper.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

SUICÍDIO NO GREENWICH VILLAGE

Braços distendidos
as mãos espalmadas contra a armação da janela
Olha para a rua 
Pensa em Bartok, em Van Gogh
Em cartuns na New Yorker
Ela cai

Eles a levam embora com o Daily News cobrindo o rosto
E o dono de armazém atira água quente pela calçada

GREGORY CORSO (1930-2001). Poeta estadunidense. Foi um dos capitães da lírica do movimento beat e é, possivelmente, um de seus poetas mais criativos, em especial quando se detém a olhar, poeticamente, a realidade urbana, como no poema acima, inserido em Gasolina & Lady Vestal (L&PM, 1985), com tradução de Ciro Barroso.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 39: UMBERTO SABA

La France Croisée (1914), por Romaine Brooks.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

A CABRA

Conversei com uma cabra.
Estava sozinha no campo, amarrada.
Saciada de capim, banhada
de chuva, balava.

Seu balido era irmão
da minha mágoa. E respondi-lhe, primeiro
brincando, depois porque a dor é eterna,
tem uma voz e não se altera.
Esta voz ouço
gemer numa cabra solitária.

Numa cabra de cara semita
ouço o lamento de todas as outras dores,
de todas as outras vidas.

UMBERTO SABA (1883-1957). Poeta e prosador italiano. De origem judaica por tronco materno, expressa em sua poesia o horror antissemita, como atesta este poema, traduzido por Paulo Mendes Campos, em Trinca de copas (Achiamé, 1984). Os trechos em itálico foram inseridos por mim, conforme o original italiano, presente no volume Pasolini e i moderni (Tascabili Bompiani, 1983).

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 38: LAFORGUE

A arte de Juarez Machado.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

LOCUÇÕES DO PIERROT X

Longe está meu tipo,
Que me disse adeus,
Pela falta, em meus
Olhos, de princípios!

Ela, no momento,
Ela, um doce e tanto,
Pode estar gerando
Um reles rebento.

Pois caiu nos braços
De um senhor de classe,
Próprio para o enlace,
Mas de gênio escasso.

JULES LAFORGUE (1860-1887). Poeta francês dos mais influentes, que passou como um cometa pela vida, deixando uma renovação definitiva na poesia de seu país e do mundo. Os modernos lhe devem muito, por suas experimentações e seu humor. A tradução aqui é de Régis Bonvicino e está em Litanias da lua (Iluminuras, 1989).

domingo, 5 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 37: LAMARTINE

Camille et Bazille (1865), de Claude Monet.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

O LIVRO DA EXISTÊNCIA

O livro da existência é o livro soberano
Que não se pode, ao léu, abrir, fechar de novo;
O trecho mais feliz não se lê duas vezes,
E a página fatal é virada sozinha;
Seria bom voltar à folha em que se amou
E o dedo está passando a folha em que se morre.

ALPHONSE DE LAMARTINE (1790-1869). Poeta francês. Um dos grandes nomes do Romantismo que legou ao mundo Hugo, Nerval, Musset, Gauthier e Baudelaire. Mal publicado no Brasil, seus poemas só se encontram em antologias, nas quais este é o mais frequente. A tradução é de Cláudio Veiga e está na maravilhosa Antologia da poesia francesa (Record, 1991).

sábado, 4 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 36: CARLOS BARBOSA

Natureza morta, de Marie Laurencin (1883-1956).
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

SOBRE TUDO E NADA

o livro sobre nada repousa sobre a cama
feito um pássaro de asas abertas
paradoxalmente preso ao lençol

espera pelo olhar malino
da leitora que o devasse

o livro sobre nada é tudo
que resta daquela noite

CARLOS BARBOSA (1958). Poeta e prosador brasileiro, nascido em Oliveira dos Brejinhos, BA, autor do romance A dama do velho Chico (Bom Texto, 2002). O belo poema acima, com suas sedutoras assonâncias e a ocultar seu fato mais importante, consta de Matalotagem e outros poemas da viagem (Funceb, 2006).

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 35: GOETHE

Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901).
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

O MAIS PRODIGIOSO LIVRO DOS LIVROS

O mais prodigioso livro dos livros
É o livro do amor.
Lendo-o com atenção fui encontrando,
De alegria, poucas páginas,
Cadernos repletos de dor;
Um só parágrafo marca a cisão.
Do reencontro?! Um diminuto capítulo,
Fragmentos... Volumes inteiros de aflição,
Alongados, desmesurados,
Infindos de tanta explicação.
Ai! Nisami o final é que vale:
A trilha achaste também.
Quem dissolve o que é insolúvel?
Os amantes que se reveem.

JOHANN WOLFGANG VON GOETHE (1749-1832). Mais do que poeta e prosador, Goethe era toda uma literatura. Raros são os escritores que atingem o seu patamar. Sua influência chega aos quatro cantos do mundo. Na poesia, no romance, no ensaio, ele foi imenso em todos os gêneros. O extraordinário poema acima foi recolhido de Amor, paixão e ironia (Civilização Brasileira, 1995), selecionado e traduzido por Flávio Meurer.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 34: MAIAKÓVSKI

O mundo em cores do bielo-russo Leonid Afremov.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

E ASSIM ME ACONTECEU

Os navios para o porto navegam;
os trens trafegam para as estações.
Assim eu, tão mais depressa 
afinal, eu amo!
 para ti, minha desembocadura, sou entregue.
O cavaleiro avaro de Pushkin
adorando seu ouro no porão
cava e enterra.
Assim eu
para ti, minha amada, regresso.
Meu coração aí está
e minha adoração é essa.
Ao regressar à casa estamos contentes  
nos lavamos, fazemos a barba.
Assim eu
para ti regresso  
acaso, para ti indo
não estou voltando para casa? 
São, as criaturas terrestres,
recolhidas para o seio da terra;
progredimos para lá
onde tudo começa.
Assim eu
por ti
sou tragado continuamente 
mal nos separamos
é em ti que se acaba.

VLADIMIR MAIAKÓVSKI (1893-1930). Poeta e prosador russo. Multifacetado, também foi roteirista, desenhista e ator. A maior voz lírica da Rússia pós-Revolução e seguramente um marco, como o fora Pushkin. O poema de amor acima está em Liubliú [Amo], que se segue a Uma nuvem de calças, reunidos num só volume pela editora Medita, de Campinas, em 2013, com tradução de André Nogueira.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

POETA-POEMA, 33: MAURO MOTA

Os peixes do pernambucano Lula Cardoso Ayres (1910-1987).
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

CAIXA DE ÁGUA

A água na caixa de água,
entre o cimento e o cobre,
imóvel, dorme. Sonha.
Maré, peixe, alga ou bote?

A água bebia a pedra,
mas, sedenta na caixa,
nem um gole consegue
da engenheira embalagem.

A água na caixa e, na água,
um legado de espuma,
de espuma prisioneira.
Fonte, rio, onda ou chuva?

MAURO MOTA (1911-1984). Poeta e prosador brasileiro, nascido no Recife, PE. Estreou com Elegias (1952). Com evidentes raízes em elementos do cotidiano, sua poesia é uma espécie de retrato da vida brasileira. O poema acima, com seu inesperado ponto de vista, integra o volume Itinerário (José Olympio, 1983).