"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

sábado, 28 de março de 2015

LEITURAS, 50: APENAS UMA MULHER

Edibolso, 1976, raridade.
Duas mulheres, numa granja, tocam a vida juntas, juntas mesmo, pois, desde o início, o narrador não deixa dúvidas de que elas têm uma relação mais profunda que a profissional. E a obra foi publicada em 1923! Portanto, o que hoje os escritores, o cinema e a tevê representam em forma de panfleto, D. H. Lawrence fez espontaneamente, sem alarde. O resultado é que esta novelinha, cujo título original é The fox [A raposa], é hoje, sem sombra de qualquer contestação, uma obra-prima do autor e de toda a literatura de língua inglesa.
 
Ao cotidiano das duas moças se mescla uma raposa, que está devorando noite a noite as galinhas, e depois um rapaz, antigo morador da granja e que chega para abalar tanto a relação profissional quanto a amorosa das duas amigas. Numa das melhoras edições desta obra em língua portuguesa (Edibolso, 1976), e hoje uma raridade que mal se encontra nos sebos, a contracapa provoca: "As duas mulheres eram jovens e bonitas. Viviam juntas naquela pequena granja. Tranquilas. Isoladas do mundo. Primeiro apareceu uma raposa, ameaçando a criação. Depois apareceu um jovem estranho, ameaçando tudo". Não há como não abrir este livro depois desta convocação.
 
E, de fato, a novela de Lawrence, como toda a sua obra, é de uma inventividade que desafia qualquer autor de sua época e ainda mais da nossa, marcada pela literatura ligeira, de obras que, virada a última página, já estamos pensando em outra coisa. Em estilo, assunto, forma, linguagem, construção de cenas e perspectiva de enredo, ele seduz a todo instante. Numa das cenas mais bem elaboradas, o narrador põe uma das moças, March, em vigília, devidamente armada e pronta a atirar, à espera de surpreender a raposa,  mas é ela que é "apanhada" pelo animal, que a observa detidamente, vira as costas, corre, detém-se, olha para trás e num instante desaparece, "macia como o vento". Não sabemos ainda, mas esta cena é uma metáfora do que vai acontecer mais tarde, com a chegada do rapaz: macio como uma raposa, ele também vai surpreender e abalar March.
 
Aos leitores interessados em desfrutar da leitura desta novela aviso que a Record acaba de lançar uma nova edição, em volume acrescido de seis contos, pela coleção Best Bolso. O tradutor, inclusive, é o mesmo da edição de 1976: José Veiga. Oportunidade única para revisitar ou descobrir um texto mais que imprescindível, de um autor que deixou mais que apenas o romance O amante de Lady Chatterley. 

sexta-feira, 27 de março de 2015

O ADEUS DE HÉLIO PÓLVORA

Pólvora, por Ramon Muniz.
Vejam como são as coisas neste novo Brasil que o Partido dos Trapaceiros e o lulismo inauguraram: há alguns meses, a presidente da república veio a público reclamar da execução, na Indonésia, de um brasileiro ligado às drogas e traficante internacional. Causou, obviamente, um estremecimento diplomático entre as duas nações, ao passo que sugeria desconhecer ou pelo menos ignorar que, diariamente, brasileiros inocentes e outros nem tanto são sumariamente executados pelo efeito direto das drogas ou de suas ramificações econômicas e sociais.
 
Ontem, faleceu e foi cremado Hélio Pólvora, um dos grandes escritores brasileiros nascidos na Bahia, e à solenidade não compareceu nenhum veículo da imprensa, nem os grandes (A Tarde, Correio da Bahia, TV Bahia, TV Bandeirantes, SBT, Record) nem os nanicos (Tribuna da Bahia, TV Educativa e as rádios em geral). Igualmente, o governo do estado e a prefeitura de Salvador não mandaram nenhum representante.
 
Claro que isso já era esperado, afinal de contas o governador, que não tem vergonha de dizer em público que colocou 66 milhões de reais no carnaval de Salvador, enquanto a saúde, a educação e a segurança, para citar o mínimo, penam por recursos e reformas, não faz, de fato, o gênero de alguém que conhece e usufrui das artes mais refinadas, como a literatura. Nestas três gestões do partido acima mencionado, os secretários de cultura são o exemplo perfeito de uma política que pretende que todos pulem e dancem até a loucura total, sufocando assim qualquer sentimento mais salutar e embotando o intelecto, como se drogas o minassem. Os últimos secretários estaduais de cultura, que podemos definir com uma tríade de personagens dos quadrinhos infantis, Brasinha, Gasparzinho e Patolino, são os representantes de uma política que almeja, a médio prazo, reduzir as artes aos seus tipos mais elementares: o artesanato, a arte popular e a arte de rua. Bastante conveniente, por sinal. Ao menos eles são sinceros: desprezam publicamente o que repudiam. Deveriam ser mais autênticos e repudiar publicamente o que desprezam.
 
Quanto à ausência da imprensa, ora, ela só pensa em e por multidões. Quando o "grande" artista da axé-music ou do pagode ou do arrocha morrer, ela estará presente, com toda a sua circunstância e suas perguntas-feitas, mais clichês que carimbos de cartório.
 
Ao adeus de Hélio Pólvora, no cemitério Jardim da Saudade, em Brotas, compareceram somente os parentes, os amigos, os confrades da Academia de Letras da Bahia, escritores e professores do Instituto de Letras da UFBA. O escritor e presidente da ALB, Aramis Ribeiro Costa, resumiu em seu excelente discurso quem foi Hélio Pólvora: contista exemplar, romancista, crítico literário, cronista, grande tradutor de William Faulkner, jornalista atuante até o momento final e, em resumo, um incansável trabalhador das letras e das palavras. A Bahia, especialmente a atual, com seus governantes medíocres e sua gente quase iletrada, não o merece. Como não mereceu a outros seletos escritores: Gregório de Matos, Castro Alves, Junqueira Freire, Luís Gama, Sosígenes Costa, Xavier Marques, Jorge Amado, Dias da Costa, Wilson Lins, Vasconcelos Maia, Euclides Neto, Afonso Manta, Adonias Filho, Herberto Sales, Godofredo Filho, Eurico Alves, Sônia Coutinho e João Ubaldo Ribeiro.
 
Devo ter esquecido algum nome importante... Mas esquecer ou ignorar, sabemos agora, é politicamente perdoável.

quinta-feira, 26 de março de 2015

HÉLIO PÓLVORA (1928-2015)

Encontro com Pólvora, em 9 de janeiro.
Num de seus contos mais célebres, Jorge Luis Borges afirma, grosso modo, que aquilo que verdadeiramente define uma pátria são os seus artistas, seus ocasos, a natureza, suas montanhas, seus mares, lagos, campos etc. Portanto, quando morre um artista, um pedaço de terra se foi, desapareceu, ainda que, com a sua arte, possamos revivê-lo em sua plenitude criadora, naquele ato que, como nenhum outro, continua, perpetuado por palavras, sons, cores, gestos, imagens, ritmos, tons. É o que sinto, hoje, ao saber que Hélio Pólvora se foi. Desapareceu o homem, calmo, gentil, generoso, sempre com um comentário inteligente e preciso acerca da literatura ou da vida. Quando liguei para uma amiga e lhe dei a triste notícia, foi o que ela me disse: "Uma pessoa boa". Por um instante, ela esqueceu o artista, o escritor e tradutor renomados, e reviveu o homem, o ser social. Isso, claro, é um sintoma. Vivemos um tempo em que a grosseria e o mau gosto dão o tom das relações e, assim, sentimos mais profundamente quando se vai uma pessoa que era antípoda e adversa a tal tendência. Dois meses atrás, estivemos, Emmanuel Mirdad e eu, na casa de Hélio Pólvora. Passamos parte da tarde com ele, conversamos sobre literatura e cinema, ele nos indicou autores e livros, recomendou que não deixássemos de ler o Nobel de Literatura Orhan Pamuk, especialmente Meu nome é vermelho, e depois fizemos três fotos, apenas. Para registrar, sem qualquer pretensão, aquele encontro, que, não sabíamos, seria o último. Tínhamos combinado de promover com ele algumas sessões de cinema, em que assistiríamos a filmes que alternativamente indicaríamos. Hélio seria o primeiro a indicar algum clássico de sua preferência. Mas não foi possível. A vida não deixou. Ou deixou por um fio mais um projeto... Bem, daqui a algum tempo, quando eu também atender ao chamado das estrelas, e igualmente Mirdad, faremos este encontro cinematográfico noutra esfera. E então relembraremos que, neste plano, aqui na Terra, apenas estávamos ensaiando a verdadeira vida.